Entre espécies e imaginários: arte, sustentabilidade e crítica à modernidade

Convidamos a curadora e pesquisadora Laura Rago para conduzir essa reflexão em diálogo com Giselle Beiguelman e Anna Carolina Fornero Aguiar

por Diretor
10 minuto(s)

Neste artigo, a curadora e pesquisadora Laura Rago costura reflexões sobre arte e ecologia com trechos de entrevistas inéditas com Giselle Beiguelman, artista visual e professora da FAU-USP, e Anna Carolina Fornero Aguiar, bióloga, doutora em Ecologia e professora da PUC-Rio, cujas pesquisas abordam sustentabilidade, sistemas sociotecnológicos e imaginários de mundo.

Letícia Ramos, A Researcher of the Nature, it is not difficult to simulate a phenomenon, 2018 – Still frame

“Manter em pé o que resta não basta…”

O verso da música Refloresta (2021), de Gilberto Gil, ecoa a urgência dos tempos atuais. Preservar já não é suficiente. O desafio agora é redesenhar formas de coexistência, tecendo um novo pacto entre passado e presente para construir futuros possíveis e imagináveis.

A mudança climática já não é uma hipótese distante, mas um dado empírico que atravessa o cotidiano em múltiplas escalas. Se o mundo está em colapso, como podemos reconstruí-lo? A regeneração passa por reconhecer que soluções já existem e que sua aplicação demanda vontade política, transformações sistêmicas e um reordenamento das relações entre humanos e o meio em que vivem.

Estética como linguagem crítica

Enquanto as temperaturas escalam e o clima se torna imprevisível, as reações sociais oscilam entre a negação, a banalização dos impactos e a busca por medidas mitigadoras. Nesse contexto, a arte atua como sismógrafo e como linguagem capaz de propor e experimentar outras formas de relação com o mundo. Sua dimensão estética não se restringe ao sensível, mas mobiliza o simbólico, o imaginário e o político.

“Durante décadas, acreditamos que a informação naturalmente levaria à ação. Mas, na prática, mesmo diante de todo o conhecimento disponível, seguimos quebrando recordes de emissão. Embora possamos medir e prever, não sentimos — e, por isso, não mudamos.”

— Anna Carolina Fornero Aguiar
(referência a Scarano, 2024)

A arte, como campo de produção simbólica e material, opera na intersecção de saberes e práticas. Ela não apenas reflete as dinâmicas sociais, mas participa delas. Ao tensionar as dicotomias entre natureza e cultura, sujeito e objeto, centro e margem, ela contribui para reposicionar debates sobre ecologia, território e pertencimento.

Para além do verde: o que sustenta a sustentabilidade?

Diante disso, artistas e instituições culturais ao redor do mundo têm reformulado suas práticas, entendendo a sustentabilidade não como um checklist ecológico, mas como um compromisso estrutural e epistemológico. Como propõe Leonardo Boff, a sustentabilidade implica garantir as condições da vida em sua multiplicidade e continuidade. No campo da arte, isso se manifesta não apenas na escolha de materiais ou na redução de resíduos, mas na forma como os processos artísticos se constituem, nos modos de circulação e nas relações que estabelecem com os públicos e com o meio.

Nesse horizonte, torna-se relevante mobilizar os aportes de Philippe Descola e Bruno Latour. Em Outras Naturezas, Outras Culturas, Descola coloca a desconstrução da separação moderna entre natureza e sociedade, indicando a existência de outros regimes ontológicos que articulam o mundo de forma relacional. Para ele, o pensamento ocidental, ao naturalizar a oposição entre cultura e natureza, impediu a emergência de modos plurais de convivência e conhecimento. Já Latour, ao criticar a modernidade em Onde Aterrar?, argumenta que a natureza nunca esteve separada da cultura, e que os efeitos da crise climática exigem o reconhecimento de um mundo comum — um plano de existência compartilhado entre humanos e não humanos.

“Curiosamente, esse termo [sustentabilidade] não foi sempre o mesmo para mim. Enquanto bióloga e ecóloga, via a natureza como algo do qual eu não fazia exatamente parte. Já como pesquisadora em bem-estar planetário, compreendo a sustentabilidade como relacional: envolve troca, interdependência e a superação da tripla alienação — do mundo, do outro e de si.”

— Anna Carolina Fornero Aguiar

Ao pensar a arte nesse enquadre, desloca-se a ideia de obra como objeto estático para compreendê-la como agenciamento, como mediação entre sistemas, saberes e temporalidades. É nesse sentido que a produção contemporânea articula novas ecologias — não apenas ambientais, mas relacionais, afetivas e políticas.

Foto © LABVERDE, por Felipe Bastos

Ecologias expandidas e fabulações críticas

A exposição coletiva Devir Paisagem, realizada na Galeria Diferença, em Lisboa, exemplifica esse movimento. As obras de Moara Tupinambá, Patrícia Bárbara, Pedro Vaz, Renata Cruz e Renata Padovan, entre outros, elaboram uma noção expandida de natureza ao incorporar saberes indígenas, cosmologias não ocidentais, questões territoriais e deslocamentos entre paisagem e corpo. A mostra articula imagens, materiais e sons que tensionam o olhar colonizador e propõem novas sensibilidades ambientais. A abordagem biocentrada de algumas obras se conecta à crítica feminista e pós-colonial, desafiando a hegemonia epistemológica da ciência moderna e criando espaços para outras formas de conhecimento.

A artista Letícia Ramos desenvolve uma pesquisa que aproxima arte e ciência a partir de experimentações com processos naturais e transformações físico-químicas. Em trabalhos como Bitácora ou Microrrevoluções, sua prática ultrapassa a representação da crise ambiental como catástrofe e investe em fabulações especulativas que tornam visíveis camadas geológicas do tempo, fluxos de matéria e ciclos invisíveis de transformação. Essa abordagem contribui para uma compreensão mais ampla da ecologia como sistema integrado, atravessado por escalas múltiplas de tempo e espaço.

A colaboração entre artistas, cientistas e ativistas — presente também em iniciativas como o Labverde, na Amazônia, ou o projeto Ecos Quatro Estações de Arte e Sustentabilidade, no Rio Grande do Sul — tem se mostrado fundamental para a construção de narrativas que desafiem o extrativismo e convoquem a imaginação coletiva como ferramenta de resistência e proposição.

Ao transformar dados e conceitos em experiências sensoriais, a arte atinge um lugar que estatísticas e discursos racionais nem sempre alcançam. Seja por meio da pintura, da instalação, do cinema ou da performance, artistas têm trazido à tona a urgência do agora, abrindo frentes para novos valores, pesquisas e processos de conscientização.

Vista da exposição Era uma vez: visões do céu e da terra. Crédito: Divulgação Pinacoteca

Entre ruína e reinvenção

Um exemplo disso é a exposição Era uma vez: visões do céu e da terra, em cartaz na Pinacoteca de São Paulo. Reunindo obras de mais de trinta artistas de diferentes gerações, a mostra propõe uma reflexão sobre os modos de habitar o planeta em meio à crise climática e à aceleração dos colapsos. Dividida em três núcleos — voltados ao espaço sideral, à conexão com a terra e à especulação sobre futuros possíveis —, articula diferentes temporalidades e imaginários. Em Once Upon a Time (2002), Steve McQueen reativa imagens enviadas pela NASA ao espaço nos anos 1970, reconfigurando narrativas sobre a vida terrestre. Já em O nascimento de Urana Remix (2020), Jota Mombaça se enterra na terra em um gesto de fusão e dissolução, performando uma crítica à separação entre corpo e ambiente. Ao propor deslocamentos sensoriais e epistemológicos, a mostra se insere no debate sobre o Antropoceno e convoca o público a imaginar outras formas de coexistência, incorporando o colapso como ponto de virada e reconfiguração.

“Tanto as artes quanto os estudos de futuros lidam com o irreal, o possível e o indeterminado. Ambos os campos envolvem processos colaborativos e têm em comum a capacidade de imaginar cenários desejáveis — ou alertar sobre futuros indesejáveis. (…) A arte pode nos ajudar a sonhar com um mundo onde a energia renovável seja parte de um sistema mais justo e equilibrado — e não apenas uma forma de viabilizar nosso consumo desenfreado. Viver com menos não significa viver pior. Pelo contrário, pode ser uma oportunidade de reconectar com o que realmente importa.”

— Anna Carolina Fornero Aguiar

Jota Mombaça, THE BIRTH OF URANA REMIX, 2020. Produzido em colaboração com Darwin Marinho e Anti Ribeiro

O Museu do Amanhã, localizado no Rio de Janeiro e gerido pelo Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), opera em um campo semelhante ao explorar um pensamento não linear sobre o futuro e articular múltiplas temporalidades. A instituição articula uma perspectiva processual de transformação, em que os apocalipses cotidianos se tornam passagens para novos começos. Essa perspectiva ressoa com a reflexão do professor José Eli da Veiga sobre o museu como um espaço que permite a familiarização com o Antropoceno e a ciência do Sistema Terra. Ao integrar a dimensão da possibilidade e da ação transformadora, o museu se afasta de uma narrativa expositiva convencional e busca criar uma experiência sensível e engajadora, onde o encantamento e a esperança ativa se tornam motores para potencializar o papel humano na construção de horizontes viáveis.

Esse ponto de vista também aponta para desafios que atravessam o sistema da arte, especialmente no que diz respeito a outros pontos que o conceito de sustentabilidade engloba. Feiras de grande porte, o deslocamento constante de obras e o consumo excessivo de recursos evidenciam a necessidade de compensar modelos de produção e circulação. Muitas instituições já ensaiaram alternativas, experimentando formas mais conscientes de agência. O desafio, no entanto, permanece: como reinventar esse circuito sem perder o encontro, a troca, a potência do fazer artístico?

Não há resposta pronta. Mas se a arte não pode salvar o planeta sozinha, ela pode, ao menos, imaginar outros futuros e inspirar as mudanças necessárias. Em tempos em que tudo que é sólido parece derreter – no sentido figurado e literal – a arte persiste como uma faísca que insiste em iluminar. E nos faz lembrar que somos capazes de criar, transformar e coexistir. No fim, a arte é isso: um fio que entrelaça resistência, reinvenção e afeto, sustentando as tramas do possível.

São Paulo, 14 de março de 2025. Exposição Venenosas, Nocivas e Suspeitas no Centro Cultural Fiesp. Foto: Everton Amaro / Fiesp

Entrevista | Giselle Beiguelman

Por Laura Rago

Como pensar a sustentabilidade na arte para além da dimensão material e técnica?

A discussão sobre os usos de materiais e as proposições de práticas ecológicas na arte remetem à reflexão sobre a obra artística como produção social, o que implica instâncias nem sempre consideradas — que vão dos regimes de trabalho envolvidos na extração e fabricação dos materiais utilizados, seu custo energético e simbólico, aos patrocínios institucionais. Algo que o professor Eduardo Augusto Costa chama de “inconsciente material”.

Outros aspectos relevantes dessa discussão dizem respeito à crítica da lógica antropocêntrica e seu especismo, temas que Eduardo Viveiros de Castro aborda em vários de seus escritos. Essa lógica sustenta o imaginário do extrativismo irresponsável e da invenção da natureza como terra virgem, pronta a ser conquistada, dominada, subjugada, a partir de relações de poder e expropriação.

Nenhuma imagem traduz com maior precisão esse pressuposto do que o poema de Rudyard Kipling, The White Man’s Burden, em que o colonialismo é apresentado como “dever civilizatório”. A catástrofe ambiental que vivemos é resultante desse modus operandi que despreza as alteridades — não só do ponto de vista da diversidade humana, mas também frente a outras formas de vida, como as plantas e os animais.

A síntese de Kipling é do século XIX, mas esse processo começa muito antes, com a conquista do chamado “Novo Mundo” (novo para quem?). Por isso, Donna Haraway, Anna Tsing e outros pensadores preferem a definição de Plantationceno à de Antropoceno.

Nessa direção, pensar a sustentabilidade é questionar o quanto esse termo tem sido instrumentalizado por abordagens que se resumem a apenas boas intenções — e colocar em questão as matrizes sociotécnicas, econômicas e imaginárias do nosso antropocentrismo, a partir de uma compreensão multi e transespécies.

Seu trabalho atual tensiona as narrativas coloniais sobre ciência e natureza. Como isso se reflete na exposição Venenosas, Nocivas e Suspeitas?

Venenosas, Nocivas e Suspeitas foca plantas proibidas, estigmatizadas e banidas pelo processo “civilizador” colonial devido ao seu uso em rituais sagrados, poderes alucinógenos e afrodisíacos e práticas de cura ancestrais. Cruzo essas histórias com as de mulheres apagadas da história da arte e da ciência.

A exposição combina jardins vivos com plantas fictícias criadas com inteligência artificial, tendo como referência ilustrações botânicas de mulheres que foram excluídas da história. Todas as plantas são acompanhadas de biografias que cruzam histórias de botânicas e mulheres consideradas bruxas — condenadas pela inquisição — com as de plantas “suspeitas”.

Essas biografias explicitam o caráter misógino da ciência ocidental, como atestam os diversos mitos sobre as plantas carnívoras, demonizadas como “plantas devoradoras de homens”, muito comuns no gótico botânico da era vitoriana. Outras evidenciam a misoginia da religiosidade imposta pelos conquistadores europeus, que associavam, por exemplo, a pimenta malagueta a mulheres com “sexualidade excessiva”.

O título do projeto tomei emprestado de um manual pedagógico do século XIX (Anne Pratt, 1857), que orientava mães sobre plantas que “provaram ser fatalmente venenosas para o homem”. Ou seja, é um “tutorial” sobre como “proteger” as crianças da natureza. Isso diz muito sobre o imaginário colonialista…

Ressalto, no entanto, que esse imaginário é constantemente atualizado. Várias dessas plantas “suspeitas” tornam-se bem-vindas na medida em que o capital consegue transformá-las em produtos lucrativos — via indústria farmacêutica, por exemplo.

Por outro lado, as práticas de exclusão e apagamento ganham novas dimensões com as tecnologias contemporâneas. Os modelos de inteligência artificial, por exemplo, são treinados com dados enviesados que reforçam a padronização dos corpos — especialmente no caso de mulheres 60+ e mulheres pretas. Esse foi, sem dúvida, o maior desafio do projeto: retratar, especulativamente, mulheres apagadas da história da arte e da ciência, na idade em que faleceram. Os datasets hegemônicos não dão conta dos corpos dissidentes.

A arte pode ser um campo de produção de conhecimento ecológico e político?

A arte é um campo para fazer as perguntas que ainda não foram colocadas.

Falando do lugar de quem opera e cria com meios digitais e tecnologias que estão em desenvolvimento há algumas décadas, diria que a arte é também o espaço para tensionar os meios, testar suas ambivalências e criar ruído numa indústria que vive do marketing da pronta-entrega de soluções.

A inteligência artificial é um território privilegiado para aprender a lidar com outras inteligências que não são humanas. Penso que não foi por acaso que comecei a trabalhar com IA e plantas simultaneamente. De certa forma, ambas me colocam num mundo de alteridades, inteligências e linguagens que, por não serem humanas, potencializam diferenças e relativizam a hierarquia tradicional da nossa suposta superioridade em relação às outras inteligências — vegetalidades, animalidades — com as quais convivemos.

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