Conhecido por sugerir a desconstrução de acontecimentos históricos – em geral marcos de violência e luta por direitos de pessoas negras nos Estados Unidos –, para criar respostas irônicas e provocativas, Obá nos apresenta uma infância nada ingênua. As crianças-personagens são, aqui, agentes do seu tempo, conscientes e capazes de transformar o mundo.
Vivem em telas tensionadas por jogos dúbios e oposições provocativas: caça e caçador; morte e renascimento; violência e renovação; lazer e risco; lúdico e ameaçador. Tras o canto como uma espécie de ressignificação da vida e da existência; a música negra para se elevar e se livrar da dor, ainda que o seu ritmo seja condicionado por essa mesma dor.
A água é um elemento recorrente e aparece também como um duelo de tensões: de um lado ela apresenta o significado universal de renovação de vida; do outro, virou símbolo dos traslados Atlânticos que foram e são passagem, mas também jazigo de corpos naufragados – o que transforma esse oceano num grande cemitério.
Obá também relembra, em vários trabalhos, o episódio “Negros na Piscina“: Era 1964 quando Martin Luther King foi preso por tentar almoçar numa área segregada no restaurante do hotel Monson Motor Lodge, na Flórida. Poucos dias depois, em clima de pacifico protesto, ativistas negros e brancos invadiram o hotel e pularam na piscina. Para o gerente do hotel, James Brock, aquela cena no espaço exclusivo para brancos devia ser imediatamente interrompida. Ele não pensou duas vezes e pegou uma garrafa de ácido clorídrico, usado para limpar azulejos, e jogou na água para forçar a saída dos manifestantes.Os ativistas foram presos, mas a repercussão do protesto foi tão grande que, no dia seguinte, o Senado estadunidense aprovou a Lei dos Direitos Civis que acabou com a legalidade da segregação racial em locais públicos e privados.
Obá transforma personagens históricos em entidades ou arquétipos para rever a posição de cada um deles na própria história.
Confira, abaixo, oito obras já emblemáticas do trabalho que estão presentes da sua individual na Pinacoteca Contemporânea, Antonio Obá: Revoada, até 18 de fevereiro de 2024.
1.Tocaia
Nesta pintura Antonio Obá propõe um jogo dúbio para falar sobre uma condição de irreverência, de não se reverenciar a um histórico de exploração. O jogo é, aqui, representado por uma caça – a criança se doa para uma pomba branca que bica a ferida oferecida. Trata-se de um ato de sacrifício, mas, ao mesmo tempo, essa ferida pode ser uma isca, uma armadilha. “Quem é, aqui, caça e caçador?”, indaga o artista.
A cena evidencia uma condição de sobrevivência: uma necessidade de burlar para garantir uma existência. Capoeira, por exemplo, é uma luta de resistência, uma forma de defesa forjada como uma dança. A ideia do sincretismo também representa essa estratégia de sobrevivência, pois os povo africanos que vieram escravizados para o Brasil usaram as imagens católicas como uma artimanha para relembrar seus orixás.
2.Banhistas N3 – Espreita
Era 1964 quando Martin Luther King foi preso por tentar almoçar numa área segregada no restaurante do hotel Monson Motor Lodge, na Flórida. Poucos dias depois, em clima de pacifico protesto, ativistas negros e brancos invadiram o hotel e pularam na piscina. Para o gerente do hotel, James Brock, aquela cena no espaço exclusivo para brancos devia ser imediatamente interrompida. Ele não pensou duas vezes e pegou uma garrafa de ácido clorídrico, usado para limpar azulejos, e jogou na água para forçar a saída dos manifestantes.Os ativistas foram presos, mas a repercussão do protesto foi tão grande que, no dia seguinte, o Senado estadunidense aprovou a Lei dos Direitos Civis que acabou com a legalidade da segregação racial em locais públicos e privados.
Esta é uma das muitas telas que Obá faz referência ao episódio. Aqui, o artista representa 3 figuras humanas e um crocodilo na água convivendo de uma forma aparentemente pacifica. As figuras humanas, no entanto, parecem estar a espera de um ataque: somente os olhos estão do lado de fora, enquanto se aproximam da presa sorrateiramente. Há, aqui novamente, uma situação de lazer e ludicidade, mas também uma situação de risco e caça. A rampa aparece como uma oferta de caminho para o espectador a entrar na piscina.
3.Fata Morgana
Faz parte de uma longa pesquisa do artista ligadas à água na qual ele explora tanto seu significado universal de renovação de vida. Mas ele também lembra constantemente do episódio “Negros na Piscina” – propondo, assim um duelo de tensões.
Comenta, ainda, sobre o translado Atlântico que foi e é passagem, mas também jazigo de corpos naufragados no mar – o que transforma esse oceano num grande cemitério. Ele pinta uma criança prestes a tocar as águas dessa piscina, como uma libélula – um elemento que simbolicamente está relacionado à quebra de ilusões e inauguração de novas fases. No canto direito, não à toa, um barquinho aparece tombado, esquecido – enquanto a figura se lança num voo lúdico.
4.Wade in the water – after Adriana Varejão
A obra faz uma referência à canção Wade in the water, do gênero spirituals, criada e cantada por negros escravizados nos Estados Unidos e interpretada por e Ramsey Lewis em 1966. Nela é narrada a cena de crianças que caminham sobre as águas. Obá busca falar, aqui, de uma espécie de resignificação da vida e da existência por meio do canto. Uma vida sempre muito galgada pela escravidão e exploração.
5.Alvorada – Música Incidental Black Bird
A pintura de uma paisagem revolta onde pássaros negros voam com desenvoltura enquanto uma figura bebe um ovo cru, comenta a violência da caça do pássaro Assum Preto e do costume de furar os olhos para que ele cante melhor. Ao mesmo tempo, Obá lembra que seus tios comiam ovo para melhorar a voz. Traz aqui, então, a ideia de um sacrifício eleva a existência. Remete, mais uma vez, ao canto, à música negra, para se elevar e se livrar da dor, ainda que ela seja condicionada por essa dor.
6.Variação sobre Sankofa – Quem toma as rédeas abre caminhos
Obá partiu de uma imagem dos anos 1950 para criar a cena desta mulher que parece contemplar o horizonte, no entardecer. Ela aparece com cordas na mão como se ela tivesse desfeito um laço, abrindo a passagem para um caminho que até então não tinha sido explorado. O nó vira régias, que ela toma e controla, guiando as pessoas que estão atrás dela.
7.Angelus
Para falar sobre uma relação ciclica de morte e vida, Obá retoma a imagem de um incêndio que aconteceu em Boston, quando duas crianças caíram de uma escada de incêndio – a primeira morreu, mas acabou salvando a vida da sobrinha que caiu em seguida, sobre ela, por amortecer a sua queda. No centro da tela, o artista faz sua versão da clássica Pietà – uma figura ampara outra recostada a uma árvore – elemento de renovação da vida. No lado direito da tela, ele pinta crianças voando como se tivessem saído de uma fogueira. O artista representa o fogo, aqui, para falar sobre “consumação e elevação da vida”. A chama e a fumaça simbolizam, portanto, a possibilidade de transcendência.
8.Figuras no caminho suspensas
A pintura faz menção às pinturas renascentistas da crucificação. Há, aqui, uma relação de irreverência quando ele brinca com a palavra “suspensa”: pode ser uma punição a uma criança que não se segue as regras ou algo que se eleva do chão. Apresenta, aqui novamente, a ideia de sacrifício e glória. Um sacrifício que resulta numa mudança de realidade, não mais marcada pela dor, mas pelo jogo e pelo lúdico. Para finalizar, Obá coroa a criança central com flores fazendo referência às crianças de uma tribo no rio Omo, na Etiópia, que costumam se enfeitar com flores e sementes.