Dos duelos de espada medievos, das ninfas e deusas gregas, das faces sutis e coloridas em leves tons renascentistas, são criados os quadros pré-rafaelitas do século XIX. Fundado em 1848, na Inglaterra, esse movimento artístico se instaurou na Era Vitoriana a partir da união entre os pintores Dante Gabriel Rossetti, William Holman Hunt e John Everett Millais, buscando resgatar o fazer artístico dos clássicos e do Renascimento.
Em meio à segunda revolução industrial, a Irmandade Pré-Rafaelita se organizava sob os moldes das antigas Confrarias Medievais e buscava no passado dos séculos V ao XV uma forma de simplificar os padrões artísticos da Era Vitoriana, pois acreditavam que na Idade Média, na Antiguidade Clássica e no período renascentista, havia na arte uma pureza e uma honestidade que já não eram encontradas no momento em que viviam.
Com séculos separando os Pré-Rafaelitas de seus motivos artísticos, o grupo, guiado por um forte sentimento de nostalgia, encontrou dificuldades em vestir as modelos que dariam vida às heroínas e musas retratadas em suas obras. Fato é que viam nos corpetes e babados do século XIX, um excesso de adereços que muito destoava da realidade fantástica das lendas arturianas e mitos dos heróis gregos. Sendo assim, os artistas passaram a adulterar os vestidos contemporâneos, para ganharem silhuetas mais simples e “folgadas”, como pregava o imaginário do espírito de revivalismo romântico desse movimento.
Inspirados pelas mesmas temáticas que guiavam as criações dos Pré-Rafaelitas, nascem os “Vestidos Artísticos”, que operavam, inicialmente, como figurinos para as composições dos artistas aderentes do movimento. Faziam parte das criações artesanais peças longas e mais fluidas, compostas por mangas bufantes, costuradas em tecidos de cores suaves derivadas de corantes naturais. Outro destaque presente nessas “obras” eram os bordados feitos à mão.
Os vestidos criados nos ateliês contrastavam de forma extrema com as produções fashion da Era Vitoriana, que trazia em suas roupagens corpetes mais apertados, saias de armação e anáguas, corantes de anil sintéticos e ornamentações luxuosas.
Vestidos Artísticos Reformados
Com o passar do tempo, os figurinos pré-rafaelitas começaram a conquistar um espaço no coração das mulheres intelectuais da Era Vitoriana, que, dentro dos círculos mais acadêmicos e das vernissages artísticas, perceberam nos designs menos rigorosos a possibilidade de criticar os costumes do século XIX.
A partir das décadas de 1880 e 1890, mantendo muitas das características dos Vestidos Artísticos dos ateliês da Irmandade Pré-Rafaelita, instaura-se o Movimento de Reforma Artística dos Vestidos, que em seu cerne, objetivava rejeitar a estética imposta pela etiqueta feminina da Era Vitoriana.
O estilista e professor de História da Moda, Lorenzo Merlino, reforça a diferença dos motivos por trás dos “Vestidos Artísticos” e dos “Vestidos Reformados”. Segundo o estudioso, enquanto os primeiros existiam por finalidades puramente artísticas, os segundos existiam para a moda e pelo debate acerca da vida feminina.
Em entrevista, o professor conta: “Enquanto a Irmandade Pré-Rafaelita é um movimento artístico, ligado à produção de pintores masculinos, o Vestido Reformado é completamente ligado ao gênero feminino e lidava com questões nada artísticas, totalmente práticas”.
Merlino também revela que o Movimento de Reforma, apesar de ter nascido na Grã-Bretanha, encontra muito de sua força nos Estados Unidos. Essa expressão um tanto quanto social também está associada ao surgimento da primeira onda feminista, na metade do século XIX.
Reformas Polêmicas na Moda
Os famosos espartilhos começaram a ser laceados e as várias anáguas nas saias reduziram drasticamente. Essas foram algumas das mudanças introduzidas pelo Movimento de Reforma dos Vestidos, que chocaram a sociedade do século XIX, mesmo que os polêmicos vestidos artísticos, ou os vestidos reformados, não fossem encontrados nos corpos da esmagadora maioria de mulheres da sociedade vitoriana.
Como explica Lorenzo Merlino, as mulheres que incorporaram os vestidos reformados em seus guarda-roupas, na realidade, eram aquelas que de fato faziam parte de uma elite intelectual. Ou seja, artistas, esposas e irmãs de pintores, que tinham fácil acesso às peças reformadas, bem como às discussões envolvendo os direitos femininos da época.
“Não podemos pensar o Movimento de Reforma dos Vestidos como algo que metade das mulheres ocidentais aderiram”, esclarece. “Essas roupas eram usadas em eventos muito específicos, na maioria das vezes, em vernissages e encontros da sociedade intelectual”.
O professor também assinala que o uso do espartilho não foi abolido por esses movimentos. A peça só foi de fato excluída do vestuário feminino no século XX, a partir dos anos 1910. Durante a Segunda Revolução Industrial, as aderentes da Reforma de Vestidos, na verdade, só passaram a utilizar corpetes confeccionados em materiais mais leves, deixando os modelos confeccionados em aço um pouco mais distantes das composições de vestuário.
Elas disseram: faz-se a bloomer!
Foi também neste período, em meio à Revolução dos Trajes, que nasceu a calça bloomer – um primeiro esboço de calça a refletir uma discreta evolução no vestuário feminino.
A peça, como ilustra Merlino, em suas modelagens iniciais, se assemelhava “a uma calça-saia, idealizada pela norte-americana Elizabeth Miller, e divulgada pela jornalista Amélia Bloomer”, militantes feministas dos Estados Unidos. O invento vem ao mundo a partir de uma versão simplificada do corpete, uma saia ampla abaixo do joelho e calças compridas e largas com ajuste no tornozelo.
“Nessa época, a única peça que de fato foi criada, foi a bloomer. E, na verdade, essa roupagem não entrou de fato no guarda-roupa da mulher, de modo que elas a usassem com frequência”, relata.
O professor completa dizendo que, apesar de a bloomer ter causado alvoroço na sociedade ocidental do século XIX, a peça era utilizada, inicialmente, apenas para atividades esportivas como ciclismo e montaria.
Sobre os cruzamentos entre Moda e Arte…
Os percursos trilhados pelos vestidos femininos, durante a segunda metade do século XIX, se inscrevem como um bom exemplo de união entre Moda e Arte no desenrolar da História. Sendo os indivíduos produtos do movimento intelectual de cada época, é evidente que, num contexto de revoluções industriais e tecnológicas, ambos os campos sejam colocados à prova, de forma que produzam novos inventos que despertem na sociedade curiosidade, espanto e empolgação.
A arte, como um sistema próprio de comunicação, e os ateliês, enquanto espaços de produção intelectual, não ficam de fora da dança das evoluções sociais. A moda, sendo uma expressão estética dos interesses e angústias de cada geração, também traz em si imagens do tempo vivido.
De pronto, enquanto figurinos para os artistas pré-rafaelitas, em seguida objeto de estudo e crítica para mulheres intelectuais vitorianas, para finalmente chegar no advento da calça bloomer e da Revolução dos Trajes… Os Vestidos Artísticos são uma obra completa, cuja interpretação revela que Moda e Arte têm muito em comum e podem caminhar juntas, promovendo discussões e refletindo revoluções.