A parte boa dessa quarentena é que nós podemos ver todos os filmes para os quais nunca tivemos tempo. Já publicamos aqui uma série de dicas para vocês: filmes de ficção inspirados nas vidas de artistas, filmes dirigidos por artistas, filmes de ficção inspirados no mercado de arte, documentários sobre o circuito artsy e documentários ótimos sobre a vida de alguns artistas. Já viu tudo isso? Calma, por conta do isolamento social muitos filmes que estavam previstos para serem lançados em grandes ou mais independentes festivais estão disponíveis online. Afinal não dá para viver sem cultura, certo?
Mês passado uma artista muito querida pela pelos brasileiros ganhou monografia nas telonas: Beyond the Visible – Hilma Af Klint, dirigido por Halina Dyrschka, está disponível no kinonow e conta a história da artista austríaca que literalmente estava à frente de seu tempo – é um clichê, mas a é a melhor forma de descrever Hilma Af Klint, uma artista que estava estudando a abstração antes ou junto aos maiores artistas abstratos mas que tinha consciência de que uma artista mulher tão potente como ela ainda não tinha seu lugar na sociedade em que vivia. Af Klint produziu 1200 pinturas e desenhos no final do século 19, mas não mostrou para ninguém e deixou claro em seu testamento que suas obra só deveriam ser reveladas ao mundo em conjunto e somente 20 anos depois de sua morte.
Ela pintou para o futuro e sabia disso, mas foi esperançosa… ele seria um pouco mais adiante. Sua família tentou expor as telas nos anos 1960, mas não encontrou reconhecimento. O mundo ainda não estava preparado para admitir que uma mulher tinha feito imagens tão poderosas. A primeira aparição seria somente em 1986 na coletiva The Spiritual in Art: Abstract Painting 1890-1985, no Lacma. Sua obra só foi reconhecida realmente a partir de 2013, quando ganhou uma grande retrospectiva no Moderna Museum. Em 2018 ela teve uma mega retrospectiva na Pinacoteca de São Paulo, com 130 obras, e no mesmo ano suas telas gigantescas ocupou as paredes do Guggenheim Museum. “Ela pintava para o futuro e o futuro é agora”, diz Johan af Klint, sobrinho neto da pintora Hilma af Klint.
Fortemente influenciada por movimentos como a Rosacruz, a Teosofia e, mais tarde, a Antroposofia, e seguidora fiel da Teoria das cores de Goethe, Hilma compartilhava da crença filosófica de que as cores têm significados e poderes espirituais, apesar de usar o preto (proibido por representar a morte espiritual). Ela estudou paisagismo e pintura na Academia Real de Artes da Suécia, onde aprendeu técnicas de representação, e chegou a participar da Bienal vienense ao lado de Wassily Kandinsky mostrando uma de suas pinturas tradicionais de paisagem. No entanto, em segredo, Hilma produziu intensamente imagens a partir de pesquisas filosóficas, espirituais e científicas. Se naquela época já era uma exceção se destacar no mercado como uma artista mulher, não havia espaço para pensamentos femininos de vanguarda. af Klint sabia, então, que era o melhor exemplo de “uma mulher à frente de seu tempo” e, talvez por isso, tenha deixado definido em seu testamento que os trabalhos só fossem mostrados em conjunto e somente 20 anos depois de sua morte.
Na série As Dez Maiores, ela estuda as quatro principais idades do homem ( infância, adolescência, idade adulta e velhice ) propondo uma questão filosófica usando elementos com ar científicos. Repare: as formas amebóides dão a impressão de estarmos olhando para um microscópio. É interessante notar, ainda nesta série, a mutação do azul para o laranja, depois para o rosa, e finalmente o vermelho, além da transformação das formas orgânicas para as geométricas, como pistas sobre alguns códigos e fórmulas adotados pela artista que transitava entre o plano astral e terreno com impressionante fluidez e eficiência.
O azul significa o feminino e o amarelo representa tudo o que é masculino, enquanto rosas e lírios propõem a multiplicidade. Para Hilma, não havia polarização entre matemática e espírito, entre ciência e religião. Ela fala de dois assuntos aparentemente opostos, mas não aponta para a dualidade e sim para a possibilidade da integração. Para a artista, os seres humanos nascem “não duais” e, ao longo dos anos, se transformam em seres duais, mas passam a vida inteira tentando voltar ao estado original.
Entre suas descrições, vale ressaltar “Os quadros foram pintados diretamente através de mim, sem nenhum desenho preliminar e com grande força. Eu não tinha ideia do que as pinturas iriam representar; porém, trabalhei com rapidez e segurança, sem mudar uma única pincelada”. Parece psicografado? Foi. Hilma foi integrante do grupo “As cinco”: artistas de mulheres se reuniam todas às sextas-feiras para rituais espirituais e, em seguida, pintar. Anna Cassel, Sigrid Hedman, Cornelia Cederborg e Mathilde Nilsson meditavam, liam a bíblia e faziam sessões espíritas nas quais entravam em transe buscando contato com “altos mestres de outras dimensões”, pois acreditavam que eram conduzidas por estes seres elevados que queriam se comunicar por meio de imagens. Ou seja: Elas já experimentaram desde o final do século 19 práticas e estratégias criadas pelos surrealistas nos anos 1930.
Apaixonada por botânica, af Klint desenhou várias flores e plantas figurativas e a partir delas começou a criar abstrações belíssimas com alguns elementos em comum: além dos estudos de cores, o espiral traz referências dos cosmos e outros desenhos preveem intuitivamente o Big Bang muito antes da teoria de Georges Lemaître.A árvore da sabedoria são estudos para as pinturas a óleo maiores e usam a analogia da árvore para desenvolver uma imagem de planos horizontais altamente complexos e interconectados, diferenciando-os entre físico, o mental e o astral. Em uma das pinturas há uma nota em que ela explica que seria uma tentativa de ilustrar o plano físico da alma humana dominada pelo desejo, e o quão importante seria, portanto, manter o plano astral independente e livre.
Vale lembrar que a “árvore da sabedoria” é citada no Antigo Testamento da bíblia como um importante elemento no processo de criação do mundo. Ela ficaria ao lado da “árvore da vida”, no Éden, seu fruto era o único proibido por Deus. Ou seja: acaba simbolizando o poder de discernimento humano entre o bem e o mal. Ela retrata, ainda, algumas das maiores religiões do mundo a partir de diferentes variações de um círculo: hinduísmo, judaísmo, budismo, islamismo e cristianismo – toda sempre originando de um mesmo ponto.“Ela fez o invisível visível. Transformou a experiência do exotérico em matéria física na tela”, observa Johan af Klint. Não à toa Halina Dyrschka escolheu a frase “além do visível”para o título do filme.