“A mulher em o direito, na verdade está cumprindo uma espécie de dever, quando se dedica a parecer mágica e sobrenatural. Ela precisa espantar-nos e encantar-nos . Como um ídolo, é obrigada a adornar-se para ser adorada. Portanto, precisa dispor de todas as artes para ajudá-la a elevar-se acima da Natureza, para melhor conquistar os corações e prender a atenção. Pouco importa que o artifício e os truques sejam conhecidos por todos, contanto que o sucesso seja garantido, e o efeito, sempre irresistível” – escreveu Charles Baudelaire em 1863.
A passagem deixa clara que durante muito tempo o único papel ( dever!) da mulher era enfeitar-se. Mas a História da Estética e as tentativas de explicar o belo começaram muito antes, e a História da Arte sempre andou junto e em diálogo com essas definições e convenções. O dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define o belo como algo “que tem forma ou aparência agradável, perfeita, harmoniosa. Que desperta sentimentos de admiração, de grandeza, de nobreza, de prazer, de perfeição.” Esta definição tem raízes na Grécia antiga e na descoberta da proporção áurea ou de outro: a relação de partes de algo ou sequência numérica devem obedecer uma constante chamada de número de ouro ou phi (arredondado é 1,618). Esta constante ligada à natureza do crescimento das plantas e animais e por isso agradável aos nossos olhos. Existe, afinal, melhor artista que Deus? Depois de sua descoberta, este número passou a ser usando em todo tipo de criação que deveria ser “bela”, pois garantia a desejada harmonia. “Para os gregos algo belo deveria unir três qualidades: equilíbrio, simetria e proporção. Tudo que apresentasse estes três elementos seria harmonioso e, portanto, de aparência prazerosa”, explica o professor de História da Arte e Moda João Braga.
Da beleza matemática grega à irreverência do Realismo
Desde a Antiguidade, a proporção áurea é usada na arte, especialmente na arquitetura e esculturas – os gregos, vale lembrar, eram idealistas e representavam o corpo da forma mais perfeita possível. No entanto, são somente os Renascentistas que compreendem que o corpo humano também é composto por proposições que seguem as regras do número de ouro ou phi. Com isso, além da proporção áurea ser usada para representar homens, mulheres e divindades – pense em Sandro Botticelli, Giotto e Leonardo da Vinci, ela virou referência na busca pela perfeição também no mundo real dando o início a uma ditadura da beleza que persiste até hoje.
É no Renascimento , também, que surge uma “moda” um pouco estranha para nós: uma mulher bela deveria ser rechonchuda. Isso é consequência da Peste Negra que matou ⅔ da população européia. Aos olhos dos sobreviventes, portanto, beleza estava relacionada à saúde e à gordura. Por isso vemos curvas mais salientes nas pinturas da época. Mas antes disso, houveram algumas “modas” e padrões de beleza interessantes: “Na Idade Média a maioria das mulheres eram retratadas com barriga saliente. Isso não quer dizer que elas estivessem todas grávidas, mas que esse era o padrão de beleza da época: as mulheres que não tinham essa ‘barriguinha’ colocavam almofadas para se enquadrarem neste padrão. Isso porque todas elas queriam se parecer com a Virgem Maria grávida. Repare também que durante muito tempo todas as mulheres eram pintadas com cabelos cacheados. Isso não significa que ninguém tivesse cabelos isso, mas as curvas remetiam ao espiral logarítmica”, explica o professor João Braga. “Qualquer manifestação de ordem sensível é resposta ao zeitgeist de sua época”, completa.
Durante o Romantismo e Rococó começa um novo momento importante: não era mais tão importante ser naturalmente belo, pois agora a sociedade girava em torno do conceito de “enfeitar-se” e a regra valia tanto para os homens quanto para as mulheres. É a época dos exageros representados pelo Luís XIV, o rei Sol, e que levaram Maria Antonieta à guilhotina. “Começa o uso de recursos para chegar a um determinado padrão de beleza. O ‘embelezamento’ ganha, assim, mais relevância que a ‘beleza ‘em si”, revela João Braga.
A Belle Époque é marcada pelas linhas curvas do Art Nouveau tanto na arquitetura quanto nos ornamentos e pinturas. E o mesmo deveria acontecer com as mulheres: elas deveriam aparentar fragilidade e, por isso, eram muito pálidas e tinham uma silhueta mais acentuada com a cintura estrangulada pelos espartilhos, seios grandes e quadril largo. Muitas delas chegavam a ter cintura do mesmo calibre do pescoço, as que não conseguiam serravam a própria costela! A estética da Belle Époque pode ser reconhecida, por exemplo, por meio das pinturas dos impressionistas Jean Béraud e Édouard Manet, além das pinturas de cabarés de Henri de Toulouse-Lautrec ( em tempo: o cabelo ruivo que tanto aparece nas telas de Lautrec era exclusivo às prostitutas).
As maiores transformações nos ideais de beleza, especificamente para a mulher e como o seu corpo é visto e usado, acontecem entre o final do século 18 e no século 19 e com o nascimento da burguesia capitalista, pois agora a beleza/elegância não é mais algo tão inatingível. Os ícones não estão somente nos membros da realeza, intocável e associada ao divino, e o corpo de muitas mulheres viram uma espécie de cabide de expressões de poder econômico. “A era industrial é um grande divisor de águas, é o auge da objetificação do corpo da mulher. Ele é (tem que ser) símbolo de feminilidade e as pinturas destas mulheres ditam os padrões de beleza.”, explica a professora Magnólia Costa. “É também nessa época em que se estabelecem diferenças entre as indumentárias femininas e masculinas. Charles Frederick Worth inventa a alta costura e, com ela, impõe uma silhueta cruel à mulher. A beleza é uma criação do homem e o corpo da mulher é matéria prima ele construir esta beleza” , completa.
É o momento também do nascimento do voyeurismo, do homem na multidão das cidades que só cresciam. E, não à toa, é um período em que intensificam as pinturas de “banhistas” e a nudez do corpo vira um gênero da pintura. Vale lembrar que nesse período a medicina começou a defender que as mulheres a lavassem seus órgãos genitais, mas os moralistas religiosos eram contra, dizendo que o ato promove “autoconsciência corporal indecente” e incentiva a masturbação. Mas os pintores amavam o assunto e nomes como Auguste Dominique Ingres, Pierre-Auguste Renoir, Henri Matisse, Paul Cézanne e Edgar Degas pintavam mulheres nuas e desejáveis em um contexto específico: nós, os espectadores, estamos observando-as sem que elas saibam. Ingres era bastante acadêmico e ainda buscava os ideais de beleza esculturas da Antiguidade e dos desenhos renascentistas. Gustave Courbet e Édouard Manet, adeptos ao Realismo, pintavam (muitas vezes prostitutas) a partir de modelos e, por isso, retratavam um corpo mais real usando as pinturas para confrontar a sociedade – pense em L’Origine du monde e na Olympia, que na época foi considerada gorda!
Anos 1900: Um padrão por década
Nas décadas seguintes, no auge do Art Deco, as linhas que ditavam a estética mundial eram as geométricas e, por isso, o corpo da mulher também. Coco Chanel liberta a mulher do espartilho, mas não deixamos de ser prisioneiras dos padrões de beleza: era comum, na época adotar achatador de seio e de quadril para garantir o corpo ideal: mais longilíneo,de linhas retas, formas geométricas e levemente andrógino. “Cada época tem os seus exageros”, alerta João Braga. Em tempo: Neste período as revistas de moda já estavam em seu auge ( a criação da Vogue foi em 1892, por exemplo, e a Harper’s Bazaar foi em 1867) e os ícones de beleza saíram da pintura para o impresso.
A ditadura estética das décadas seguintes também era ditada pelas divas do cinema e, nos anos 1940 e 1950 a cintura volta a ser apertada. Enquanto Christian Dior apertava mais uma vez a cintura da mulher ao lançar o New Look, em 1947, marcando a despedida da silhueta sóbria e austera dos tempos de guerra e a volta de muita feminilidade nos padrões estéticos e de estilo, nomes como Lauren Bacall, Rita Hayworth, Marilyn Monroe, Sophia Loren, Brigitte Bardot eram referência de beleza. “Na época em que a figuras do cinema ditavam o padrão estético, a beleza almejada era algo intangível. O que muda agora é que há um conceito de que ninguém precisa ser feio, basta ter recursos financeiros: com um bom personal trainer, cirurgião plástico, dermatologista, nutricionista e stylist, qualquer pessoa pode ficar bonita”, explica o cirurgião plástico Eduardo Fakiani.
São nesses anos do pós-guerra que a cintura volta e o consumo crescer exorbitantemente. A beleza almejada vem num pacote onde é preciso, também, ter um lifestyle cheio de glamour. Não à toa, é justamente isso que Andy Warhol vai criticar na década seguinte. Os anos 1960 trazem símbolos do consumo desenfreado no capitalismo norte-americano e um ícone de beleza, a Marilyn Moore, para as telas de Warhol.
O irreverente artista também pintou outro grande símbolo beleza daquela década: Twiggy estava em suas telas e nas capas de revista e tornou-se a encarnação da nova ditadura da beleza. A partir desse período as mulheres são cobradas pela magreza excessiva e pela juventude eterna – padrões que até hoje escravizam mulheres de todo o mundo. Há, é claro, um grupo que conseguiu se libertar destas prisões estéticas, mas ainda são poucas em relação às mulheres que perseguem esse ideal a todo custo. “E com com as mídias sociais, agora não basta ser bela, você precisa ser maravilhosa!”, ressalta Fakiani.
A radicalidade dos padrões de beleza pedia uma resposta também radial. E assim as artistas mulheres respondem à objetificação do corpo feminino na década seguinte, nos anos 1970. Em Rhythm 0, por exemplo, Marina Abramović coloca entrega o próprio corpo ao público permitindo que os visitantes fizessem o que quisessem com ela disponibilizando objetos para as pessoas utilizarem durante a ação – entre eles, um revólver que chegou a ser apontado para ela durante a performance.
Os Young British Artists emergem durante a era punk: enquanto nomes como Sarah Lucas e Tracey Emin faziam obras provocativas chamando atenção para como o corpo da mulher era visto e usado pela sociedade, jovens mulheres entravam para o mercado de trabalho em competição direta com os homens. Não à toa, as roupas femininas e masculinas começam a dialogar e a androginia ganha força, As ombreiras, volumes nas roupas e cabelos e a maquiagem exagerada dão poder a elas no escritório. Como tudo no mundo da arte tem seu ciclos, os anos 1990 teve seu exagero para o lado oposto: tudo era minimal, acabam os truques se embelezamento para uma busca mais clássica. Foi o período de glória das top models e o ideal de beleza expresso, por exemplo, na foto de Peter Lindbergh que reunia Cindy Crawford, Linda Evangelista, Naomi Campbell e Tatjana Patitz.
Anos 2000: Do excesso à naturalidade, individualidade e valorização das origens
“Nos últimos 10 anos houve, no Brasil, uma mudança muito significativa no acesso aos procedimentos dermatológicos. De repente muitos recursos estavam disponíveis e a tendência inicial foi seguir o padrão americano de consumo exagerado também na dermatologia. Por isso, as mulheres começaram a colocar muito preenchimento no rosto criando, por exemplo, queijo, bochecha ou boca.”, explica a dermatologista Maria Bussade.
Desde meados de 2015 o que entrou em voga é a chamada “harmonização do rosto”: os dermatologistas usam preenchimentos para criar volumes com o objetivo de atingir uma “proporção bela”. Mas o que significa isso hoje? Os volumes e distâncias do rosto devem obedecer a proporção áurea – exato, aquela regra matemática desenvolvida na Antiguidade clássica e aplicada no corpo humano a partir do Renascimento. Ou seja, até hoje buscamos uma beleza matemática na qual se dividirmos o rosto ou o corpo em partes, elas devem obedecer a constante phi (1,618). Dizem que o rosto de Angelina Jolie segue essa regra, assim como o corpo de Gisele Bündchen – duas beldades do nosso tempo. A musa mór da História da Arte, Mona Lisa também obedeceria o número de outro, além de conter a curva gerada pela Sequência de Fibonacci. Mais uma vez: beleza ainda é matemática pura.
Ainda existem os dois ‘tipos de mulher’: aquela que se identifica com a estética americana, que exagera em tudo, e aquela mais européia que tende a fazer menos intervenções focando em tratamentos que preservem a estrutura do rosto melhorando somente a qualidade da pele. Tanto a dermatologista quanto o cirurgião afirmam que essa busca depende muito do nível cultural da paciente, mas a tendência é caminharmos para um ideal de beleza que soa mais natural . Fakiani explica, por exemplo, que nos anos 1980 eram muito comuns próteses enormes e que até hoje existem mulheres que se inspiram em celebridades como Kim Kardashian e por isso exageram em tudo, mas agora a maioria de suas clientes buscam resultados mais discretos e proporcionais aos seus corpos.
O grande problema da harmonização matemática é a padronização. “Já existem estudos que comprovam que a harmonização facial só tem efeito positivo em 20% das pessoas. E muitos médicos estão questionando esse procedimento, pois se todo mundo ficar lindamente igual não haverá mais individualidade. A Audrey Hepburn, por exemplo, é linda com o queixo menor do que o recomendado pelas regras da máscara phi”, explica Bussade. “Durante muito tempo a base dos estudos era a proporção áurea, mas hoje tentamos personalizar cada paciente – o que na prática não funciona pois todos ficam com o mesmo rosto: lábios carnudos, maçãs do rosto e mandíbulas proeminentes, nariz reto e com a ponta levemente levantada ( não mais tão fino a empinado como nos anos 1950) “, completa Fakiani. O ideal, sugere , é manter a estrutura das pessoas e melhorar apenas a qualidade da pele e não faltam tratamentos menos invasivos para isso.
E se existe algo em comum entre os ideais de beleza dos anos 2000 é a busca por uma individualidade e maior aceitação do próprio corpo e origem. “A partir dos anos 2000 começou uma mistura de tudo! Ninguém queria mais ser igual a ninguém. O legal passou a ser o diferente de todo o resto. Você pode ter como referência beleza uma Amy Jade Winehouse que era toda montada e tinha o cabelo bem anos 1950 ou uma Gisele Bündchen que é e procura ser sempre naturalmente bela. Por isso ela gosta de um loiro mais natural e o penteado com ar descolado.” explica o cabeleireiro Marcos Proença que tem a modelo como cliente. “Mas também existem aquelas mulheres que querem um cabelo loiro platinado e com muitos efeitos como eu fazia na Carminha [personagem da Adriana Esteves na novela Avenida Brasil]. Há uma relativização da estética, não um padrão comum. Tudo pode. O que acontece é que as pessoas usam diferentes códigos visuais para criar imagens específicas com o objetivo de serem inseridas em um determinado grupo social”, completa o cabeleireiro.
Você reparou que até agora não falamos de nenhuma mulher negra como referência de beleza, excerto a Naomi Campbell? É que elas foram renegadas nos circuitos que definiam os patrões estéticos durante muito tempo, mas uma série de artistas trabalham há algum tempo para mudar a ditadura do cabelo liso e da pena clara e os resultados começam a aparecer entre os desejos da população e, consequentemente, na indústria. Para nomear alguns, Amy Sherald (responsável por fazer o retrato oficial de Michelle Obama), Zanele Muholi, Lorna Simpson, Mickalene Thomas, Toyin Ojih Odutola, Tschabalala Self, Lynette Yiadom-Boakye
O afro-americano Kerry James Marshall aborda o assunto de forma mais direta ao pintar salões de beleza repleto de pessoas negras e cabelos crespos. “Durante muito tempo você só via cabelos lisos na televisão brasileira e para grande parte da população essa é a referência. Por isso acho importantíssimo o trabalho de pessoas maravilhosas como a Roberta Rodrigues que luta contra o racismo na tv e a Anita que virou símbolo dessa mulher não repreendida pelos padrões clássicos de beleza”. O resultado pode ser visto nas prateleiras de cosméticos: o número de produtos para cabelos cacheados aumentou consideravelmente nos últimos 5 anos e hoje todas as marcas de maquiagem apresentam uma gama muito maior de bases tentando abarcar a maioria dos tons de pele – o que era bastante raro nas décadas anteriores. O cabeleireiro conta que nos últimos anos muitas de sua clientes pararam de fazer processos químicos para alisar o cabelo – um reflexo de um momento de maior empoderamento e aceitação das origens. “Elas aprenderam a gostar de ser quem são e isso muda tudo. Há uma libertação das ditaduras estética”, exclama. A arte feminista teve sua potência nos anos 1970, mas o mercado só começa a absorver o que aquelas artistas reclamavam agora quando cada um tem direito sobre seu corpo. Viva.