Com quais elementos ou temas podemos construir imagens que representam a identidade brasileira? Que mitos e alegorias fundam nossas múltiplas dimensões identitárias? Como as representações dessa identidade transpassam a história e apontam para problemáticas que envolvem sua percepção por parte dos que estão no poder? Como estas questões se refletem na construção do acervo de um museu ou de uma coleção privada, atravessada por escolhas e gostos pessoais?
Estas são algumas das perguntas que o visitante deve se fazer ao visitar a coletiva Terra em tempos: fotografias do Brasil que abre no próximo sábado, dia 26 de março, com cerca de 240 fotografias do acervo do MAM do Rio de Janeiro produzidas de 1860 até os dias de hoje.
Curada por Beatriz Lemos, a mostra abre o programa do museu dedicado às reflexões sobre o centenário da Semana de Arte Moderna desafiando a própria ideia de tempo linear – um conceito construído no mundo ocidental branco, sendo dividida em temáticas que trazem grupos de imagens de diferentes tempos e que se conectam e se confrontam constantemente. A exposição apresenta a primeira obra fotográfica do acervo [foto de Justiniano José de Barros de 1860 ] até uma obra feita esse ano, especialmente para a exposição – a instalação criada por Aline Motta. Optamos por pensar a exposição a partir de uma temporalidade circular. O que nos ajuda a entender o que é o Brasil são eventos e marcos históricos que não são fixos e isso nos ajuda a entender que a identidade também não é fixa. Ela tem muitos atravessamentos que podem, inclusive, estar em contradição”, ressalta a curadora.
Revisitando o acervo do museu, Lemos encontrou muitas presenças, apontando para olhares sintomáticos dos artistas e colecionadores, e também muitas ausências. Um exemplo bem claro dessas ausências é o fato de Élle de Bernardini ser a única artista mulher transexual do acervo.
Ao longo da exposição nascem aí outros questionamentos: Como podemos analisar a História da Fotografia Brasileira em termos de gênero, raça ou classe? Quem tem acesso a essa tecnologia? Quem e o que instiga o interesse e o olhar de quem está retratando? Quem é retratado e o que essas pessoas estão fazendo?
No primeiro módulo, é possível ver imagens que apontam para experimentações técnicas na própria fotografia e para a tecnologia. “A capoeira, por exemplo, é uma técnica importantíssima para a nossa cultura, e por muitos motivos não era vista como uma grande tecnologia dessa sociedade”, explica a curadora.É interessante notar, ainda, como na ideia de trabalho, fixa no imaginário brasileiro, aparece um notório número de pessoas racializadas fazendo trabalhos braçais, em contraponto com os políticos brancos em Brasília. Isso nos mostra como a construção imagética de trabalho tem resquícios escravocratas.
As imagens que nos fazem refletir sobre o espaço público ganham destaque: de um lado, o lazer (a praia ou o baile na periferia); do outro, as manifestações e conquistas que começam na rua. É notória a diversidade e importância do uso desses espaços para a elaboração, e percepção, da ideia de nação.
Vale dedicar algum tempo observando as fotografias do núcleo “familiar, afeto e moradia” onde a curadora encontrou trabalhos que apontam para o direito à moradia; para conceitos estruturais para a construção da dita “ família tradicional brasileira”; e, para os direitos de casais homoafetivos. Vale notar: O afeto familiar, quando pensamos na sociedade brasileira, não é sempre retratado de forma romântica. Na foto de Erick Peres, por exemplo, vemos uma cabeça cortada. “ Existem muitas famílias despedaçadas, destroçadas, de mães solo. E isso também constitui nossa sociedade”, explica Lemos que por uma expografia também circular, onde os temas estão sempre se revisitando, em constante negociação.
Aqui vale destacar, aqui, o trabalho da série Filha natural, de Aline Mota, que foi atrás de vestígios de sua ancestralidade e se deparou com histórias e tabus que estão na memória coletiva de um país construído por uma estrutura escravocrata e patriarcal. Ela entra na exposição com um olhar pessoal e contemporâneo para falar justamente sobre as presenças e ausências citadas pela curadora. A partir de uma análise inédita de iconografia histórica e relatos orais de sua família, a artista levanta hipóteses possíveis sobre as origens de sua tataravó, Francisca, que muito provavelmente trabalhou escravizada numa fazenda em Vassouras, no Rio de Janeiro.
Em busca dessa memória, Aline reinterpreta uma imagem feita na varanda da Casa Grande da fazenda, em 1860, pelo fotógrafo Revert Henrique Klumb. “Apesar da senzala ter sido demolida e o terreiro de café ter sido transformado em quadra de tênis, a varanda continua a mesma de quase dois séculos atrás com sua notável cerca de madeira”, explica a artista. Ela constrói, então, um jogo de espelhamento criando um embate entre passado e presente, entre a figura de Claudia Mamede, atual uma líder comunitária de Vassouras, e as escravas retratadas na imagem de Klumb, Joana e Rachel. “Claudia habita este espaço simbólico como disruptora de uma certa narrativa de servidão e complacência entre senhores e escravizados”, afirma a artista.
Procure, ainda, pelas imagens de Walter Sánchez; Fernanda Magalhães, Daniela Dacorso; e, André Dusek – além de medalhões como Alair Gomes, Claudia Andujar, Cristiano Mascaro, Geraldo de Barros, Iole de Freitas, Joaquim Paiva, Marc Ferrez, Mario Cravo Neto, Miguel Rio Branco, Pierre Verger e Sebastião Salgado.