David Hockney: 7 décadas de pintura

Conheça os marcos da trajetória de um dos artistas mais emblemáticos da contemporaneidade, que terá sua maior mostra na Fondation Louis Vuitton em 2025

por Diretor
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Conhecido por suas vibrantes e brilhantes paisagens, David Hockney apresentou em Veneza, em 2017, uma grande mostra individual dedicada aos seus retratos (e a uma única natureza morta). Foi a primeira vez que pude ver um conjunto tão grande de obras do artista britânico – de nascimento, mas californiano por escolha – em um mesmo lugar, ainda que não fossem as suas famosas piscinas ensolaradas ou paisagens exuberantes. Curiosamente, a representação dos sujeitos nessas pinturas carregava, de alguma forma, a mesma energia solar das cenas externas pelas quais Hockney se tornou célebre, com elementos similares povoando gêneros de pintura tão distintos: um azul esverdeado ao fundo dos retratados evocava a água cristalina e o céu de brigadeiro tão presentes em suas obras; ainda que os modelos estivessem todos sentados numa mesma cadeira, denotando o ambiente interno do retrato, a luminosidade que incidia sobre eles parecia tentar reproduzir a claridade dura e branca da pintura ao ar livre.

Nascido em uma cidade industrial do norte da Inglaterra em 1937, o pintor estudou na escola de arte local antes de mudar-se para Londres para frequentar a prestigiada Royal Academy of Art, em 1959. Sempre me ocorre que Bradford, sua cidade natal, e Londres, lugares predominantemente cinzas, chuvosos por mais da metade do ano, tiveram um papel fundamental em nutrir no artista um desejo de busca pela cor e pelo sol. Não demoraria muito para que Hockney encontrasse aquilo que ele talvez nem soubesse que estava procurando.

Hockney em seu estúdio em 1969. © TopFoto.co.uk

Em meados da década de 1950, o Reino Unido havia testemunhado o surgimento de um novo movimento nas artes. Estranhamente, a Pop Art emergiu primeiro ali, antes de florescer e ganhar novos contornos nos Estados Unidos. Entre fins da década de 1940 e início dos anos 50, artistas como Eduardo Paolozzi e Richard Hamilton começaram a incorporar materiais publicitários em seus trabalhos, inspirando-se em propagandas veiculadas em revistas e jornais e por seus ambientes domésticos imediatos. Paolozzi e Hamilton empregavam cores primárias ou usavam tons existentes comercialmente, pintando direto do tubo ou da lata de tinta; traziam elementos mundanos e banais para suas obras, tendendo a um realismo ordinário ancorado em técnicas como colagem ou serigrafia, afastando-se das tendências expressionistas abstratas anteriores. Assim, Hockney ingressara no meio da arte bem no cerne da ebulição desta nova linguagem, com suas primeiras criações incorporando a imagem de embalagens e objetos de consumo, como “Tea Painting in an Illusionistic Style”, datada de 1961. Ao mesmo tempo, Hockney também revelava a influência de Francis Bacon em suas pinturas, com certas áreas cobertas com pinceladas vigorosas e nada controladas, rostos distorcidos ou uso de cores não naturais nas figuras retratadas.

Apesar do talento reconhecido, Hockney quase não pôde se formar pela Royal College. Em 1962,  fora obrigado a realizar um desenho de modelo vivo feminino, sob ameaça de não poder concluir o curso. Como resposta à escola, pintou “Life Painting for a Diploma”, retratando um modelo masculino com ares de fisiculturista, que mais parecia saído de uma revista dedicada a temas da saúde e estilo de vida. Ao lado do atleta o pintor desenhou um esqueleto de maneira realista, como se denunciando que anatomicamente corpos são corpos e não importa muito o sexo ou o gênero daqueles que retratamos. Em seguida, outro conflito com a RCA atrasou mais uma vez sua graduação: Hockney se recusara a escrever uma monografia final defendendo seu trabalho, demandando que sua avaliação se baseasse exclusivamente nas obras que havia criado enquanto aluno. Inegavelmente talentoso, o artista forçou a Royal College a mudar suas exigências para os formandos, concedendo a Hockney seu diploma e ainda premiando-o na mostra final dos alunos daquele ano.

David Hockney, “Life painting for a diploma”, 1962. Via artnet.com

Em 1963, o pintor mudou-se para Notting Hill, bairro conhecido por sua vocação cultural e artística. Seu ateliê ocupava praticamente todo seu pequeno apartamento: apenas a cama e uma cômoda compunham o ambiente, onde ele trabalhava todos os dias da hora que acordava até a hora de dormir. Já representado pelo galerista John Kasmin, Hockney começa a ter algum sucesso como artista, viajando para Nova York, onde conheceu Andy Warhol. Mas o badalado Studio 54 nunca foi muito atraente ao britânico, que logo decidiu mudar-se para Los Angeles, em 1964.

Sempre me pergunto o que vem antes: o interesse do artista por um novo assunto e o componente externo que o inspira, ou um novo espaço que desperta essa curiosidade? No caso de Hockney, suas pinturas de “duplas” – pares românticos que habitam suas criações de maneira intimista e afetiva – precederam sua mudança de contexto. E dentre essa série notável, há uma obra especialmente premonitória datada de 1963. “Domestic Scene, Los Angeles” apresenta duas figuras masculinas (uma nua, outra semi-nua) em um espaço doméstico, uma mistura de sala com banheiro, onde o homem nu toma uma ducha, enquanto o outro parece ensaboar suas costas. A partir desta pintura, seus pares reapareceram inúmeras vezes no chuveiro – onde, de acordo com o artista, o corpo fica mais visível do que numa banheira, por exemplo. Talvez, seu interesse pela água também tenha começado ali.

A mudança para Los Angeles em 1964 disparou, então, uma série de pinturas de piscinas. Hockney passou a usar a tinta acrílica, um suporte relativamente novo em comparação com a centenária tinta óleo. A acrílica é uma tinta mais plástica, líquida, sintética, e que traz já de fábrica tons vibrantes e saturados. Entre 1966 e 1972, ele pintaria algumas de suas obras mais conhecidas, como “Peter Getting Out Of Nick’s Pool”, “A Bigger Splash” e “Portrait of an Artist (Pool with Two Figures)”.

David Hockney, “Peter Getting out of Nick’s Pool”, 1966. © David Hockney. Crédito: Richard Schmidt

A primeira retratava o estudante de arte Peter Schlesinger, que Hockney conhecera enquanto lecionava na UCLA. Peter se tornaria seu amante e também sujeito de várias de suas obras. O artista muitas vezes usava fotografias polaroids que tirava em sua vida cotidiana para construir suas cenas, o que também influenciou o formato quadrado da obra. Ademais, a estilização da casa ao fundo e das ondas na superfície da água evocam uma linguagem gráfica muito presente em histórias em quadrinho – outra grande influência da Pop Art nos EUA. Já a segunda obra, de 1967, traz outra cena aquática, só que dessa vez sem nenhuma pessoa retratada. O ponto de vista da cena parte do trampolim da piscina, com a arquitetura moderna da casa ao fundo. O único indício de presença humana é a água que espirra da piscina, como se um personagem oculto tivesse acabado de saltar dentro da água, gerando os respingos congelados na imagem. O céu azul sem nuvens e as duas palmeiras solitárias transpiram o calor desértico da cidade. A obra é toda formada por linhas retas paralelas e perpendiculares que criam áreas de cor muito lisas, uniformes, situando-se numa linha tênue entre pintura e fotografia.

A última obra viria a tornar-se a mais famosa de suas criações. Em 1972, Hockney enfrentava um certo bloqueio criativo, tinha dificuldade de concluir uma pintura havia meses. Pouco antes de exibi-la em uma exposição, o pintor decidiu refazê-la toda, pois o ângulo da cena o incomodava. Por fim, acabou por incluir-se na própria imagem, autorretratando-se na beirada da piscina, enquanto Peter nadava abaixo sob as ondas distorcidas pela refração da luz na água. Diferente das duas obras anteriores, o cenário no entorno não trazia a arquitetura moderna da Califórnia, mas uma paisagem exuberante de montanhas e matas frondosas, enquanto os ladrilhos em torno da piscina desenhavam o grid geométrico que formava perfeitamente a perspectiva de ponto único do primeiro plano.

Vale aqui um parênteses para dizer que essa pintura de 1972 foi vendida pela Christie’s de Nova York em 2018 por pouco mais de 90 milhões de dólares, batendo recorde de leilão para um trabalho feito por um artista vivo – recorde esse superado no ano seguinte com a venda de Rabbit, de Jeff Koons, arrematado por 91.1 milhões de dólares.

Hockney nunca deixou de pintar pares, ou duos, mas passou a retratar pessoas reais a partir de 1968 – antes ele havia pintado apenas casais imaginários. Ao passar a pintar casais reais que eram seus amigos, também começou a registrar os ambientes domésticos, misturando uma pintura realista e simbólica, detalhada mas estilizada, permitindo ao espectador que vislumbrasse a vida daqueles que compunham seu círculo íntimo. Sempre partindo de fotografias e observação direta, o artista criou um modo próprio de eternizar os casais, em geral com uma das partes mirando o espectador, e a outra mirando seu parceiro. Muitos desses retratos duplos traziam casais gays, algo muito singular da trajetória de Hockney que contava sempre ter sabido que era homossexual. Ainda que este tema nunca tenha comprometido sua carreira, sabemos que ele foi uma exceção em meio a um mercado colecionador mais conservador.

Don Bachardy e seu parceiro Christopher Isherwood (à direita) retratados por David Hoickney em 1968, na casa do artista em Santa Monica, Califórnia. Foto: David Hockney

Essa série de pinturas foi produzida até meados da década de 1970, quando o pintor mudou-se por um período para Paris, e retomou o uso da tinta óleo. Em 1976, ao voltar para Londres, publicou sua autobiografia, e finalmente retornou à Califórnia. Em 1977, concluiu “My Parents”, encerrando o ciclo de retratos de casais, depois de várias tentativas fracassadas de pintar seus pais, Kenneth e Laura. Hockney passou mais de um ano quase sem pintar, como se precisasse se recuperar daquela longa empreitada.

40 anos depois, em 2017, a Tate Modern organizou uma grande retrospectiva de seu trabalho celebrando 60 anos de carreira e 80 anos de vida. Naquele mesmo ano, em Veneza, “82 Portraits and 1 Still-life” era inaugurada no Ca’ Pesaro, trazendo retratos posados que o artista vinha produzindo há mais de 4 anos. O método para este conjunto era inusual: as pinturas não partiam de fotografias e observação, mas eram produzidas em 3 sessões de pintura de 6 horas de duração. Seus retratados, como comentado no início do texto, estavam sempre na mesma cadeira, no mesmo ambiente. O que mudava entre um trabalho e outro era a relação do artista com seu sujeito, e cada obra revelava mais do que apenas as características físicas do modelo – as pinturas eram uma tradução do que Hockney sentia por aquelas pessoas, permitindo que o espectador pudesse acessar um pouco dessas relações e emoções. Afinal, o que Hockney construiu em seus quase 90 anos de vida e 70 de carreira, foi a capacidade peculiar de captar a familiaridade que tinha com seus sujeitos e de nos aproximar intimamente deles, como se nós mesmos pudéssemos conhecer suas histórias e personalidades.

Em 9 de abril de 2025, a Fondation Louis Vuitton, em Paris, inaugura a maior retrospectiva já dedicada ao trabalho do artista. Ocupando 11 galerias e reunindo mais de 400 obras, a exposição percorre as várias fases de sua longa carreira. Essa é uma oportunidade não apenas de revisitar seus icônicos retratos, paisagens e cenas cotidianas, mas também de compreender como sua prática dialoga com os lugares, as experiências e as emoções que marcaram sua trajetória.

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