Cortes, tarifas e desmonte ameaçam a infraestrutura cultural dos Estados Unidos

Entre cortes federais e aumento de tarifas, museus e bibliotecas lutam para manter projetos e acessibilidade

por Diretor
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Fachada do Delaware Museum of Art. Foto cortesia do Delaware Museum of Art

Na última semana, um grupo de 21 procuradores-gerais estaduais moveu uma ação judicial contra Donald Trump e membros de sua administração em resposta a uma ordem executiva que visa desmantelar o Institute of Museum and Library Services (IMLS) e outros dois órgãos federais, a Minority Business Development Agency (MBDA) e o Federal Mediation and Conciliation Service (FMCS). A medida, criticada por instituições como a American Alliance of Museums (AAM) e a American Library Association (ALA), já resultou no congelamento de financiamentos e na reestruturação abrupta de equipes envolvidas com programas públicos de cultura, educação e mediação comunitária.

O IMLS, criado por decisão do Congresso em 1996, tem sido uma das principais fontes de financiamento para bibliotecas e museus nos Estados Unidos – especialmente os de pequeno e médio porte, que atuam em regiões periféricas ou voltadas a públicos historicamente negligenciados. A tentativa de extinguir suas funções por decreto é vista como inconstitucional e “ilegal diversas vezes”, segundo o processo judicial liderado pelos estados de Nova York, Rhode Island e Havaí. “Mais um ataque contra comunidades vulneráveis, pequenos negócios e a educação de nossas crianças”, afirmou a procuradora-geral de Nova York, Letitia James.

Essa ofensiva federal se articula com uma agenda mais ampla de reestruturação do Estado, expressa no Project 2025 – plano idealizado por grupos conservadores para redesenhar as funções do governo federal, inclusive na área da cultura. A proposta parte de uma lógica ideológica que vê museus, bibliotecas e universidades como espaços de suposta militância progressista, e propõe reduzi-los ou privatizá-los. No campo da cultura, isso tem implicações diretas: o ataque à estrutura pública que sustenta a arte e o conhecimento ameaça desarticular programas voltados à educação, à diversidade cultural, à memória e ao acesso democrático à cultura.

Nas artes visuais contemporâneas, os efeitos já se fazem sentir. Muitas instituições que promovem práticas artísticas ligadas à justiça social, à produção comunitária e à educação informal dependem diretamente de recursos do IMLS e de entidades vinculadas ao National Endowment for the Humanities (NEH). A retirada desse suporte não apenas coloca em risco projetos em andamento, como limita severamente o futuro de iniciativas emergentes, especialmente aquelas que trabalham com arquivos vivos, patrimônio imaterial e narrativas não-hegemônicas.

Drew Oberjuerge, diretora do Riverside Art Museum (RAM), na Califórnia, declarou ao Hyperallergic que o museu trabalha com diferentes cenários de financiamento para os próximos anos, incluindo a possibilidade de cortes severos. “O IMLS forneceu conhecimento e apoio para que nossa organização se tornasse mais forte, mais impactante e capaz de atender melhor nossa comunidade diversa”, afirmou. Entre os projetos ameaçados está uma exposição prevista para 2026 no Cheech Marin Center for Chicano Art and Culture.

Além disso, a recente proposta de Trump de aumentar drasticamente as tarifas de importação sobre produtos chineses e de outros países – o chamado “tarifaço” – traz implicações importantes para o setor. A sobretaxa de até 60% sobre bens importados atinge cadeias produtivas essenciais para as artes visuais, como equipamentos de montagem, componentes tecnológicos, materiais gráficos e até obras de arte. Instituições, artistas e galerias que operam internacionalmente já preveem elevação de custos e atrasos logísticos, o que pode comprometer exposições, feiras e colaborações transnacionais.

Mais do que um debate técnico sobre orçamento público, a tentativa de apagar o IMLS traz à tona discussões centrais sobre o papel dos museus, bibliotecas e centros culturais como espaços de construção coletiva da memória e do pensamento. Em um momento em que instituições culturais são convocadas a assumir funções pedagógicas, inclusivas e críticas, seu desmonte representa também um ataque simbólico à pluralidade de visões que formam o tecido social norte-americano.

Para além dos Estados Unidos, o episódio se insere em um contexto internacional mais amplo, em que políticas culturais públicas vêm sendo desmanteladas ou instrumentalizadas por governos autoritários. Na Hungria, o governo de Viktor Orbán colocou museus e universidades sob controle estatal direto, restringindo a autonomia curatorial e acadêmica. Na Argentina, o presidente Javier Milei promoveu cortes radicais no setor cultural, incluindo o esvaziamento do Instituto Nacional de Teatro e ameaças ao cinema nacional. No Brasil, durante o governo Bolsonaro, editais foram paralisados, a Lei Rouanet foi enfraquecida e artistas críticos ao governo foram publicamente hostilizados. Em comum, esses processos mostram uma tentativa sistemática de limitar o acesso à cultura como direito público, restringir a diversidade de narrativas e desarticular espaços simbólicos que abrem margem para pensamento crítico e dissenso. Na prática, o que se perde não é apenas verba – é a possibilidade de imaginar futuros distintos, de produzir conhecimento coletivo e de afirmar a cultura como direito e não privilégio.

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