O domingo, dia 7 de junho de 2020, ficará para a História da Humanidade…e da Arte. Entre os diferentes e intensos protestos que apoiaram o movimento Black Lives Matter (BLM) naquele final de semana, vimos vídeos dos manifestantes de Bristol, na Inglaterra, derrubando a estátua do o comerciante de escravos Edward Colston. A partir desse momento icônico para a consciência negra, artistas, curadores e governantes começaram a questionar obras públicas que instigam o racismo e obras de arte que hoje pertencem a instituições fora da África por causa dos processos de colonização e as consequentes, violentas e involuntárias formas diáspora Africana.
O que fazer com a estátua de Edward Colston?
Colston era um comerciante de escravos do século 17, responsável pela venda de cerca de 84.000 escravos africanos e por 30.000 mortes e muitas escolas, ruas e edifícios em Bristol levam o seu nome como homenagem. Sua estátua foi erguida em 1895, mais de 150 anos após sua morte e 88 anos depois que a Grã-Bretanha aboliu o comércio de escravos, “para comemorar o presente de sua vasta fortuna na cidade de Bristol”, de acordo com o Artnet.
Dois dias depois que sua estátua foi removida e jogada no rio urbano ao lado de seu posto, o grafiteiro Banksy criou um esboço para um memorial da escravidão em Bristol que incorporaria o comerciante de escravos e os manifestantes que derrubaram sua estátua. A imagem publicada no instagram do artista causou comoção na web e comentários como “Destrua essa merda e substitua por um herói contemporâneo”. Foi o primeiro passo para uma discussão bem maior e necessária.
Muitos acreditam na importância do registro a história e aprovam a proposta de Banksy, enquanto outros criticaram o artista falando que a imagem de Colston deveria desaparecer completamente e que integrar os manifestantes ao memorial não ajuda muito. Banksy sugere satiricamente que o novo memorial agrade tanto as pessoas que querem a estátua devolvida e as que desejam sua destruição.
Há, ainda, aquele que defendem deixar a estátua de Colston na água já que muitas de suas vítimas morreram afogadas. Mas o Conselho da Cidade de Bristol tem outros planos e já “pescou” o monumento e o armazenou para adicioná-lo ao museu da cidade. “É mais perigoso apagar a história. Acho que o cenário mais apropriado para o monumento derrubado é estar em um museu.”, a artista nigeriano-britânico Yinka Shonibare ao Artnet News. “Se a comunidade deseja que sejam removidos, eles devem ser removidos, mas devem permanecer em exibição pública, criando museus para eles, como um lembrete para que não cometer os mesmos erros no futuro”, continua. O curador Gus Casely-Hayford, do Victoria & Albert Museum, acredita que a estátua somadas aos cartazes da marcha podem render uma exposição importante para a cidade. Mas outros dizem que estátuas como essas não podem ser adequadamente contextualizadas em coleções de museus existentes, que têm suas próprias hierarquias de conhecimento já enraizadas. Artistas como Omar Ba pedem, assim, pela criação de um “verdadeiro Museu da Colonização, como existe um Museu do Holocausto, para que as pessoas possam refletir sobre esse fato colonial”.
O que colocar no lugar da estátua removida?
Além de questionar o que fazer com a peça removida, a pergunta discutida nas últimas semanas é: o que colocar no pedestal vazio onde estavam obras públicas que integram o racismo? No caso de Colston, quase 45.000 pessoas assinaram uma petição pedindo que o pedestal fosse usado para comemorar um líder local dos direitos civis, Paul Stephenson. Ele liderou o boicote de ônibus de Bristol em 1963, que começou depois que as autoridades locais de transporte se recusaram a empregar tripulações de ônibus negras ou asiáticas. A artista Sokari Douglas Camp sugere instalar no espaço uma obra de arte permanente em comemoração à abolição da escravidão. Hew Locke, que faz intervenções em esculturas públicas de figuras históricas problemáticas desde os anos 80, sugere que um artista seja comissionado para fazer uma intervenção permanente na própria estátua. A ideia é tornar público elementos com presença e poder equivalentes, para iniciar uma nova conversa.
Arte para colonizar e decolonizar
O movimento também levanta outro debate: o que é preciso fazer, hoje, para investigarmos um movimento mundial de descolonização? É importante compreender, aqui , que a remoção das estátuas públicas não busca atacar a história e sim corrigir a forma como a escrevemos.
Para muitos no Reino Unido, a notícia de que a estátua de Colston foi removida por um protesto da BLM foi chocante – principalmente porque a maioria não sabia que o monumento existia. Sua destruição refletia uma poderosa sub-narrativa dos protestos mundiais desde o assassinato de George Floyd, Breonna Taylor, João Pedro e muitos outros pela polícia: a necessidade de descolonizar a história e a educação públicas.
Houve uma série de condenações pelas ações “criminosas” dos manifestantes do governo, de alguns historiadores e até do atual líder do Partido Trabalhista, Keir Starmer ( sua posição, aliás, pode ser um lembrete de como alguns movimentos de esquerda ocidentais foram cúmplices no apoio ao imperialismo colonial). O historiador William Dalrymple chegou a comparar a queda da estátua ao bombardeio dos budas pelo Talibã em 2001. No entanto, comparar as ações de um protesto multirracial do BLM com o de terroristas e fascistas é, na melhor das hipóteses, uma leitura profundamente tendenciosa da história.
Fica claro aqui porque as lutas pela descolonização do século 20 centraram-se chamam nossa atenção para como o conhecimento é gerado e como ele pode transformar mentes e ações racistas. A disputa moral é traçada, então, pelo embate de dois objetivos políticos opostos: a demanda por liberdade e o direito à autogovernança, representação e representatividade versus os desejos coloniais de saquear, dominar o lugar de fala e impor aspectos políticos, culturais e sociais ao colonizado. Mas essa discussão não deve ficar restrita ao meio acadêmico. Ao contrário, deve estar profundamente ligada ao espaço público: museus, nomes de ruas, parques e até estátuas são locais de contestação igualmente válidos.
Quem conta essa história?
Seja lá qual for a solução artística para o caso Colston, uma coisa é certa: isso é trabalho para um artista afrodescendente. O lugar de fala de criativos negros estão sendo revisados no mundo inteiro. Na mesma semana da manifestação, por exemplo, arquitetos e designers criaram um Google Doc público para promover estúdios comandados por criativos negros e indígenas. Sadiq Khan, prefeito de Londres, anunciou uma revisão de todas as estátuas e monumentos de referência da capital com links para a escravidão. Poucas semanas antes, Luciana Ribeiro, uma das curadoras do Tomie Ohtake, publicou uma lista de curadores negros e outra de indígenas. “É importante trazer esses nomes para diversificar o campo”, explica a curadora. Em paralelo Deri Andrade trabalha para o lançamento do Projeto Afro – uma plataforma independente que funcionará como uma espécie de enciclopédia de artistas brasileiros afrodescendentes. Já a antropóloga Lilia Schwarcz está trabalhando num livro junto ao artista Jaime Lauriano, que traz retratos e verbetes de personagens negros apagados da história.
O governo francês lançou uma chamada aberta para escolher o artista que fará a instalação de um memorial para as vítimas da escravidão nos Jardin des Tuileries, perto do Museu do Louvre. Mas “o artista escolhido deve ser de ascendência africana”, ressaltou Louis-Georges Tin, presidente The Conseil représentatif des associations (Cran). E continua:“Um memorial é uma boa idéia, mas um museu seria melhor. Já é tempo de termos um museu em Paris”. Os funcionários do Louvre serão responsáveis pelo gerenciamento do projeto do novo monumento. O artista vencedor será anunciado no início de 2021, com o trabalho programado para ser concluído até o final do próximo ano. O prazo de inscrição é 1 de setembro.
Repensar o saqueamento
Na mesma semana, Chika Okeke-Agulu, um professor de história e teoria da diáspora africana da Universidade de Princeton, fez um pedindo em seu Instagram para que a Christie’s retire de seu catálogo do leilão do dia 29 de Junho um par de esculturas Igbo chamadas de alusi . O motivo? Trata-se de “esculturas sagradas” e foram removidas da Nigéria por Jacques Kerchache, um colecionador francês de objetos de arte africanos que morreu em 2001.
Okeke-Agulu discordou de como a casa de leilão definiu a proveniência original das esculturas como tendo sido “adquiridas in situ” entre 1968 e 1969. O historiador da arte disse que elas foram retiradas da área de Nri-Awka, na Nigéria, a cerca de 30 minutos de onde ele cresceu, e que foram removidos durante a guerra civil do país, travada entre o governo e a República de Biafra. Okeke-Agulu contou, em artigo escrito para o New York Times, que lembra da mãe olhando para um catálogo de esculturas de Igbo agora nas coleções européias. Ela explicava como “o desaparecimento de esculturas semelhantes dos santuários de nossa cidade natal no sudeste da Nigéria e o fim dos festivais associados foi uma de suas lembranças mais dolorosas dessa guerra.”. E continua: “As vendas públicas desses objetos devem parar”.
Não basta criar exposições, é preciso fazer um programa antirracista dentro dos museus
Em 2018, as curadoras Antonia Alampi e iLiana Fokianaki trabalharam com Ba e o artista Ibrahim Mahama para imaginar um possível contra-monumento a uma estátua local do missionário e explorador colonial Constant de Deken (há um pedido de remoção dessa estátua também). No entanto a dupla acabou renunciando ao dizer que o museu não havia implementado políticas anti-racistas sérias além do cronograma de programação. “Deveríamos ter como objetivo remodelar os currículos educacionais, renomear, desaprender e ouvir todas as narrativas que foram apagadas de maneira malevolente. Caso contrário, para ser franco, tudo é um gesto simbólico vazio que elimina os problemas reais e acaba por capitalizar violentamente a dor.”, explicaram as curadoras e Ibrahim Mahama em carta aberta.