Miami abriga a maior população haitiana fora do Haiti. Aos 6 anos, Didier William chegou na cidade com toda sua família e, durante anos, foi visto como apenas mais um entre tantos imigrantes, enquanto trabalhava de todas as formas possíveis para sobreviver. Entre um bico e outro, ele chegou a ser vendedor na loja de um dólar na rua do MOCA North Miami. Agora a instituição apresenta a exposição “Nou Kite Tout Sa Dèyè” (“Deixamos tudo isso Atrás” em crioulo haitiano) com mais de 40 trabalhos do artista de 39 anos.
O título é irônico e simbólico já que William busca afirmar justamente o contrário: é impossível deixar tudo para trás, pois o que vivemos fica impresso nos nossos corpos e pensamentos para sempre. Fica no nosso DNA. Referindo-se à jornada física e psicológica do artista para chegar aos Estados Unidos, a exposição propõe uma análise da noção de lar.
Como um imigrante negro e queer nos Estados Unidos, essa exibição é prova de perseverança e talento. Conheça algumas características sobre o trabalho dele presente na exposição e inspire-se.
1.Lar doce lar:
As pinturas de casas representam os primeiros lugares onde William e sua família viveram no norte de Miami. O artista procurou retratar estas construções com a maior precisão possível, mas também acrescentou um toque surreal: as estruturas são “engolidas” por um mar de galhos e tentáculos de seres misteriosos.
O padrões impressos nas telas têm a intenção de lembrar o Haiti que William e sua família deixaram em 1989. Eles nasceram a partir de sua memória das cortinas, cobertores, travesseiros e lençóis que sua mãe trouxe na viagem para o novo lar. Os objetos viraram lembranças de vida que ficou para trás e marcaram sua infância em Miami.
Esses padrões aparecem, nas pinturas, como artefatos materiais nos próprios espaços – na arquitetura, nas paredes, na paisagem e nos móveis. William descreve suas duas primeiras casas em Miami como “contêineres” – eram lugares para morar enquanto solicitava a cidadania, receptáculos para itens como fitas cassete enviadas pela família no Haiti e locais para descansar quando doente.
2. Imigrante, negro e queer:
As obras tecem suas próprias lembranças pessoais e sociais, alinhavadas por símbolos e mitos da religião haitiana e por temas mais amplos relacionados às comunidades negras e queer. São questões de pertencimento, negociação de novos espaços e identidades e perseverança.
Uma nova escultura de 3,6 metros de altura presente na mostra, por exemplo, assume a forma de um potomitan- uma espécie de totem cuja estrutura é bastante comum no vodou hounfour (templo). No vodu, acredita-se que, por meio do potomitan, os loa (espíritos) podem descer pela terra para contatar os fiéis. Enquanto a escultura fica suspensa entre os reinos terreno e espiritual, existe a possibilidade – e talvez até a esperança – de transcendência.
3.Resignificando a história
O desejo de inserir sua cultura na História da Arte fez com que William passasse a re-interpretar cânones da pintura como Death of Marat, de 1793, de Jacques-Louis David, que retrata um revolucionário assassinado deitado em uma banheira.
Na versão do haitiano, intitulada Ma Tante Toya, uma figura feminina, vestida em um padrão contínuo, está do lado de fora da banheira com um facão na mão. Seu pescoço se inclina para a esquerda e ela encara o espectador com um olhar ameaçador. Ao contrário da versão de David, não há dúvida de que a figura de William é vivíssima. É como se ela fosse uma mulher ressuscitada da revolução haitiana!
Serviço
Nou Kite Tout Sa Dèyè
Local: MOCA North Miami
Endereço: 770 NE 125th St, North Miami, FL 33161
Data: Até 16 de abril de 2023
Funcionamento: De quarta a domingo, das 10h às 17h.
Ingresso: Grátis