Como a vida e a obra de Tacey Emin se tornaram a mesma coisa

Uma das artistas mais influentes de sua geração, está em cartaz no Palazzo Strozzi, e com uma retrospectiva prevista para 2026 na Tate Modern

por Diretor
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Tracey Emin no Palazzo Strozzi por ocasião da exposição Sexo e Solidão. Palazzo Strozzi, Florença, 2025. Foto: Ludovica Arcero, Saywho

Quando criança, aos 13 anos, Tracey Emin fora vítima de um estupro, enquanto vivia na cidade litorânea de Margate. Na época, a insegurança e marginalização da cidade contribuíam para um ambiente que vitimou muitas meninas como ela. Aos 26, Emin submeteu-se a um aborto médico, depois de engravidar de gêmeos do namorado à época. O procedimento não ocorreu como esperado, tornando-se um dos episódios mais traumáticos da vida da artista. Essas e outras experiências são os alicerces fundamentais e estruturais de seu trabalho, profundamente autobiográfico e íntimo, sensível e visceral.

Emin e seu irmão gêmeo, Paul, nasceram em Croydon, Londres, em 1963. Depois de crescer em Margate, voltou a Londres em 1987 para cursar o mestrado em pintura na Royal College of Art, uma das mais prestigiadas instituições de ensino artístico do mundo. A angústia e o abalo emocional decorrentes da interrupção de sua gravidez a levaram a destruir todas as pinturas que ela havia produzido durante o curso. No início dos anos 1990, assim, a artista recomeçava sua produção, experimentando com outros meios e suportes e passando interagir tangencialmente com o grupo dos YBA – Young British Artists.

Aqui vale uma digressão. YBA é uma designação bastante flexível para reunir artistas que emergiram em Londres entre o final da década de 1980 e início dos anos 1990, muitos vindos principalmente da Goldsmiths College, e uns poucos da RCA. Esses artistas se juntavam para organizar exposições independentes em galpões abandonados e fábricas desativadas, sendo o polêmico Damien Hirst o principal nome entre o grupo. Em meio a essas mostras alternativas, o colecionador, empresário da publicidade e galerista Charles Saatchi passou a comprar obras dos artistas em ascensão, tendo um grande impacto na carreira meteórica de alguns deles – Saatchi era mais do que um colecionador, foi um grande mecenas dessa geração.

Voltando a Emin, ela e Sarah Lucas (outra artista brilhante da turma) abriram juntas uma loja chamada The Shop, onde vendiam obras suas muito inusitadas: entre os produtos à venda, camisetas com versos de músicas punk e cinzeiros com o rosto estampado de Damien Hirst. Mas mais do que um negócio, The Shop era mesmo um ponto de encontro para muitos criativos, um lugar onde as pessoas podiam criar coisas, conversar, beber e dançar, diferente de tudo que já havia sido feito em Londres. O projeto durou apenas seis meses, mas foi suficiente para criar uma aura em torno das artistas. Ambas encerraram a iniciativa em meados de 1993, quando Emin comemorou seu 30º aniversário com uma festa de arromba.

Tracey Emin e Sarah Lucas – The Shop, 1993 | YBA

Com a mística em torno de seu nome, a artista teve sua primeira individual naquele mesmo ano na prestigiosa White Cube, com uma mostra intitulada “My Major Retrospective” – um título bastante irônico considerando que se tratava de uma curta carreira cuja produção inicial havia sido majoritariamente destruída poucos anos antes. Seguindo sua vertente autobiográfica, Emin exibiu fotografias de suas primeiras pinturas destruídas junto de imagens de sua vida pessoal, além de quase uma centena de objetos havia colecionado ao longo dos anos, muitos deles íntimos, algo que a maioria das pessoas jamais cogitaria expor ao público. Os visitantes podiam ver as cartas que ela havia escrito a ex-namorados, diários de adolescência, brinquedos e recordações como o recorte de uma página de jornal que noticiava a morte de seu tio preferido. Por outro lado, o título da mostra também sugeria que, mesmo estando no estágio inicial de sua trajetória artística, Emin já havia passado por tantas coisas significativas que o termo “retrospectiva” se mostrava bem justificado.

Em 1995 a artista criou um de seus mais polêmicos trabalhos, Everyone I Have Ever Slept With 1963–1995, uma barraca de acampamento com bordados dos 102 nomes das pessoas com quem ela já havia dormido até o ano de 1995. Apesar do título parecer sugerir que a lista incluía apenas parceiros sexuais, na verdade o trabalho abordava de maneira bastante curiosa todas as pessoas com quem Emin já havia se relacionado sexualmente E também apenas dormido junto em uma cama, como sua avó. Na época, ela se recusou a vender a obra a Saatchi, criticando o publicitário por seu trabalho para a primeira ministra Margaret Thatcher.

Tracey Emin, “Everyone I Have Ever Slept With 1963–1995”, 1995

Já em 1999, Emin expôs-se da maneira mais crua até aquele momento. Exibiu na mostra do Turner Prize – a mais importante premiação de arte contemporânea do Reino Unido – sua própria cama, com os lençóis e cobertas desarrumados, embalagens de comida e bebida, bitucas de cigarro, jornais velhos, calcinhas, camisinhas e lenços de papel usados, roupas manchadas de menstruação, garrafas de vodca vazias, um teste de gravidez… A instalação My Bed havia sido criada no ano anterior, depois que a artista havia passado dias na cama deprimida por causa do término de um relacionamento. O fato de estar participando de um prêmio dessa magnitude com um trabalho tão visceral e confessional levou Emin a despontar como um dos nomes mais potentes de sua geração. Anos depois, a obra seria vendida por 2,5 milhões de libras.

Tracey Emin, “My Bed”, 1998. Via www.singulart.com

Os trabalhos da artista foram ficando cada vez mais explicitamente feministas, com escolhas de materiais que evidenciam seu olhar crítico e suas reflexões sobre gênero e violência, perda e luto, traumas e adoecimento. Em peças têxteis como Hellter Fucking Skelter (2001) e Hate and Power Can be a Terrible Thing (2004), Emin cria colchas de retalho estampadas com frases remendadas inscritas na caligrafia da artista, insultos como “eu odeio mulheres como você”; sentenças sobre sua vida como “é uma espiral morro abaixo”. Normalmente são usados cobertores velhos, sem acabamento na barra, e as frases todas são aplicações em letras maiúsculas cortadas de retalhos de tecido colorido, estampado e de diferentes materiais, como feltro, veludo, cetim, entre outros. A artista também inclui textos escritos à mão e desenhos impressos em tecido, com costuras grandes e irregulares. Esses trabalhos não apresentam acabamentos de costura delicada ou precisa, mas se parecem mais com colagens têxteis. Sua primeira colcha de retalhos, intitulada Hotel International (1993) já havia sido exibida na exposição inaugural citada acima, My Major Retrospective.

Em 2006, Emin foi convidada para ocupar o pavilhão britânico na Bienal de Veneza de 2007 – a segunda artista mulher do país a ter uma mostra individual no evento depois da apresentação de Rachel Whiteread, em 1997. A exposição, intitulada Borrowed Light (ou Luz Emprestada, em tradução livre), revelou a visão singular da artista, sua forma nua e crua de falar de sua própria vida, cheia de intimidade e realismo emocional. Foi uma oportunidade sem igual, na qual Emin pode mostrar a ampla variedade de suportes em que trabalhava, dos bordados e desenhos a pinturas, instalações e peças em neon.

“The chance to exhibit at the Venice Biennale is a great honour and has helped me to redefine what my work really means to me. Borrowed Light is my most feminine body of work so far, very sensual but at the same time it is graphically sharp. It is both pretty and hardcore.”

(“A chance de expor na Bienal de Veneza é uma grande honra e me ajudou a redefinir o que meu trabalho realmente significa para mim. Borrowed Light é meu corpo de trabalho mais feminino até agora, muito sensual, mas ao mesmo tempo é graficamente afiado. É tão bonito quanto hardcore.”)

Já em 2010, a artista realizou uma colaboração com uma das mais importantes artistas do século XX, Louise Bourgeois, consistindo de dezesseis desenhos muito íntimos produzidos desde 2009. A série teve início com a própria Bourgeois, que começou pintando torsos masculinos e femininos sobre papel, misturando pigmentos de guache vermelho, azul e preto com água para criar silhuetas delicadas e fluidas, como aquarelas. Em seguida, as imagens foram enviadas a Emin que, mais tarde, viria a confessar que carregou os desenhos ao redor do mundo, da Austrália para a França, com muito medo de tocá-las. Mas enfim, a artista passou a sobrepor as formas de Bourgeois com formas inventadas, desenhando figuras menores que se entrelaçavam com os corpos pintados ou escrevendo com sua própria caligrafia palavras que descreviam as emoções que os guaches vibrantes evocavam. O conjunto foi um dos últimos projetos que Louise Bourgeois concluiu antes de sua morte.

Louise Bourgeois, Tracey Emin, “I Wanted to Love You More”, no. 1 de 16, da série, Do Not Abandon Me, 2009-2010 © 2025 The Easton Foundation/Licensed by VAGA, NY © 2025 Tracey Emin

Em 2024 ​Tracey Emin foi nomeada Dama Comandante da Ordem do Império Britânico (DBE) na lista de Honrarias de Aniversário do Rei, em reconhecimento aos seus serviços prestados à arte. A artista expressou surpresa e alegria com a honraria, afirmando: “Dame Tracey soa bem. Estou muito, muito feliz.” Anteriormente, em 2013, Emin havia sido nomeada Comandante da Ordem do Império Britânico (CBE).

Atualmente Emin está em cartaz com uma exposição individual no Palazzo Strozzi, em Florença, intitulada Sex and Solitude, que permanece aberta até 16 de julho de 2025. A mostra reúne mais de 60 obras em diferentes mídias, abrangendo distintas fases de sua produção, incluindo trabalhos exibidos pela primeira vez na Itália e produções inéditas realizadas especialmente para a ocasião. Já em 2026, quarenta anos depois de colocar seu próprio corpo no centro da arte britânica, Tracey Emin retorna com uma retrospectiva que não busca explicar, muito menos suavizar. Ao contrário: reafirma. A mostra apresentada pela Tate Modern percorre quatro décadas de uma prática que se construiu na fricção entre exposição e resguardo, linguagem e silêncio, prazer e perda.

Seja em instalações cruas e viscerais, em neons confessionais, em colchas de retalho combativas ou em delicados desenhos, o trabalho de Emin sempre parte da vida da própria artista, tratada de maneira urgente, intensa, sem edição e sem desculpas, terrivelmente honesta e livre, ultrapassando todos os limites pessoais. Suas obras permitem ao público que sinta as mesmas emoções que a artista, assim como despertam muitos outros sentimentos que se desdobram a partir do choque e do impacto inicial em contato com elas. De acordo com Emin, a coisa mais bonita do mundo é a honestidade, ainda que seja doloroso encarar essa verdade.

Tracey Emin, Sex and Solitude” Palazzo Strozzi, Florença, 2025. Foto: Ela Bialkowska, OKNO Studio © Tracey Emin. Todos os direitos reservados, DACS 2025

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