Há poucas épocas da história brasileira em que tivemos um cenário artístico-institucional tão efervescente quanto no período entre o final da década de 1940 e o início de 1950.
Em razão da celebração de 75 anos de existência dos museus de arte moderna do Rio e de São Paulo, convidamos Cauê Alves, curador-chefe do MAM-SP, Fábio Magalhães, museólogo e ex-curador-chefe do MASP, e Pablo Lafuente, diretor artístico do MAM-RJ, para nos ajudar nessa viagem do tempo pela história dos museus aniversariantes e a entender como a criação deles moldaram o panorama artístico brasileiro.
Como surgiram?
Desde as décadas de 1920 e 1930 já havia uma pressão dos modernistas de institucionalizar a arte moderna. Afinal, até então, nós tínhamos duas grandes instituições nacionais: a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Museu Nacional de Belas Artes no Rio, ambas vigorosamente voltadas para a arte acadêmica. Do ponto de vista mundial, os Estados Unidos, que haviam acabado de sair vitoriosos da Segunda Guerra, tentavam uma aproximação conosco, com o intuito de agregar zonas de influência.
Assim, em 1947, mesmo ano do início da Guerra Fria, o empresário e político brasileiro Assis Chateaubriand sai na frente na corrida pela criação do primeiro museu de arte moderna do país e inaugura o MASP num prédio ainda em obras na rua Sete de Abril, em São Paulo. No ano seguinte, ganhamos o MAM-SP em outro andar do mesmo prédio de Chateaubriand e MAM-Rio na sede do Banco Boavista, encabeçados por Ciccillo Matarazzo e Raymundo de Castro Maya, respectivamente. O que acontecia ali era um incentivo dos Estados Unidos que nos apresentou o MoMA de Nova York, aberto em 1929, como modelo não apenas de museu moderno, mas de negócio, visto que estas foram as primeiras grandes iniciativas privadas de arte no Brasil. A doação de obras do museu nova-iorquino somado aos baixos preços das obras de arte europeia, garantiram acervos poderosos para estas novas instituições.
Principais realizações dos Museus de Arte Moderna
Em São Paulo, a inauguração do museu se deu com a exposição “Do Figurativismo ao Abstracionismo”, que foi organizada pelo crítico francês Léon Degand, convidado para dirigir a instituição, e contou com obras de brasileiros como Cícero Dias e Waldemar Cordeiro ao lado de peças de grandes nomes como Jean Arp, Alexandre Calder, Robert Delaunay, Wassily Kandinsky e Francis Picabia. É importante entender que a mostra, assim como a arte abstrata como um todo, que ainda era muito recente no país, foi mal recebida tanto pelo público quanto pelos artistas de produções ligadas a temáticas de engajamento social, como Di Cavalcanti, que chegou a escrever sobre sua posição contrária ao movimento. Mas a identidade do MAM é marcada pela promoção desta arte, que veio a se popularizar posteriormente graças ao esforço do Museu.
Também é impossível deixar de falar sobre as primeiras Bienais de São Paulo, encabeçadas pelo Museu. Em 1951, a partir da sugestão de Danilo di Prete, Ciccillo e sua esposa Yolanda Penteado, uma das principais mecenas e colecionadoras brasileiras da época, criam uma Bienal no Brasil seguindo o modelo italiano, com a intenção de conquistar para a capital paulista a posição de “centro artístico mundial”. Vale lembrar que, apesar de que hoje em dia existam centenas de bienais pelo mundo todo, até então só existia a de Veneza. Portanto, nas primeiras edições, os dois eventos competiam como os mais relevantes do circuito de arte mundial.
Penteado, que estabeleceu contatos com artistas internacionais, trouxe obras de arte de renome mundial e viabilizou o financiamento necessário para a realização das bienais, garantiu a realização de eventos de peso. A segunda edição da Bienal de São Paulo contou, por exemplo, com a presença de Guernica – obra emprestada pelo MoMA, que a abrigava durante o período em que o fascismo estava em ascensão na Espanha – e se estendeu até o ano seguinte, para fazer parte das comemorações do 4º Centenário da cidade de São Paulo. A exposição foi mencionada por diversos críticos como uma das principais do século XX. Sobre ela, o próprio secretário da Bienal de Veneza disse: “Os paulistas realizaram em duas edições o que demoramos 50 anos para conseguir”.
Entre outras grandes realizações do MAM-SP, que marcaram a história nacional, estão: a primeira exposição de fotografia do país apresentava obras do artista Thomaz Farkas, em 1949; a criação da Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo, também em 1949, resultou na Cinemateca Brasileira, a mais importante da América Latina e uma das mais importantes do mundo; a exposição “Ruptura”, em 1952, que marcou o início oficial da arte concreta no Brasil; além da criação do Panorama da Arte Brasileira, em 1969.
Já o MAM carioca, apresentou “Pintura Européia Contemporânea” , em 1949, como sua exposição inaugural e foi palco de parte considerável dos movimentos artísticos que se instituíram a identidade da chamada “arte brasileira”, como o Grupo Frente, em 1954, o Neoconcretismo, em 1959, a Nova Objetividade Brasileira, em 1967, entre outros.
Entre suas exposições históricas, não podemos deixar de citar a Opinião 65, organizada pela marchand e jornalista Ceres Franco e pelo galerista Jean Boghici, no ano que seu título indica. “A jovem pintura pretendia ser independente, polêmica, inventiva, denunciadora, crítica, social, moral. Ela se inspira tanto na natureza urbana imediata como na própria vida com seu culto diário de mitos” – com essas palavras, Franco anuncia a exposição, que trouxe temas como desigualdade, injustiças sociais, opressão e resistência, colocando em evidência a realidade do Brasil ditatorial daquele momento. Foi nesta ocasião que Hélio Oiticica apresentou seus Parangolés pela primeira vez. Impedidos de entrar na instituição, o artista e seus amigos sambistas da Mangueira, realizaram o trabalho na área externa, onde foram aplaudidos pelos críticos, artistas, jornalistas e parte do público que lotava as dependências do Museu.
MAIORES CRISES
O fechamento do MAM-SP
A realização das Bienais demandou esforços, estruturas e financiamentos da parte do MAM-SP. Como contrapartida, estas contribuiram para a formação do acervo do museu por meio das premiações geradas por sistema de apoio de empresários, empresas e colecionadores na aquisição e doação de obras. Mas aos poucos, isso foi se tornando cada vez mais insustentável. “O evento que era do MAM estava se tornando muito maior do que o próprio museu”, explica Cauê Alves.
Em 1961, Mário Pedrosa aceita o convite de assumir a direção do Museu sob a responsabilidade de tentar encontrar uma solução econômica de sobrevivência para ele. Mas nada foi suficiente. “Ciccillo começa a perceber que manter um museu é muito caro”, comenta Alves com tom de ironia, “o MAM nunca esteve bem financeiramente”. No ano seguinte, é criada a Fundação Bienal de São Paulo e, no início de 1963, é realizada uma assembleia que decide separar definitivamente a instituição do evento.
Então, na intenção de transformar o MAM em um museu público, nasce o MAC, recebendo todo o seu acervo, juntamente com a coleção de propriedade privada de Ciccillo e Yolanda Penteado – a ideia era que recebesse o próprio nome do MAM, mas não foi possível. “O MAM foi o museu que mais uniu a intelectualidade à classe artística paulista”, afirma Magalhães, “houve um movimento muito grande em São Paulo quando o Ciccillo resolveu fazer essa doação e acabar com o MAM. Houve uma reação tão forte que o Museu renasceu quase que imediatamente”.
Diná Lopes Coelho foi a peça-chave deste renascimento: a partir de 1967, quando já acumulava a experiência de organizar a 7ª e a 8ª Bienais, assumiu a direção técnica do museu que estava sem verba, sem sede e sem acervo. Coelho bateu à porta do gabinete do prefeito e conseguiu que o Pavilhão Bahia da 5ª Bienal fosse a nova casa do MAM. Em seguida, criou o Panorama de Arte Atual Brasileira – e seus Prêmios Aquisição –, em 1969, que se tornou uma das mais relevantes e tradicionais exposições do Brasil, sendo realizada até hoje a cada dois anos. A mostra, juntamente com a farta doação de obras do conselheiro Carlo Tamagni, reerguem o MAM e possibilitam a existência dele como uma das principais instituições brasileiras da cena contemporânea.
Incêndio do MAM-RJ
Na madrugada de julho de 1978, o MAM-RJ foi atingido por um incêndio, que se presume ter começado como curto-circuito na Corpo-Som – uma sala aberta a experimentação em som e performance –, mas que, em menos de 30 minutos, já havia se espalhado pelos três andares do pavilhão de exposição. Pablo Lafuente, acredita que três fatores em conjunto podem ter culminado a tragédia, que veio a consumir aproximadamente a metade do acervo, além da totalidade da biblioteca: “Tínhamos regras mais relaxadas do que hoje, não eram tão rigorosas quanto o necessário. A situação financeira do museu também nunca foi boa ou estável. E os projetos de manutenção dependem de fundos de incentivos. Outra coisa, eram os materiais do sistema de luz, por exemplo, que não eram apropriados.” Mas ele também ressalta: “se fosse um único museu que queimou, você poderia falar de uma falha em específico, mas nos últimos cinco anos aconteceu na Cinemateca, no Museu Nacional, no Museu da Língua Portuguesa, ou seja, é algo constante, e isso é resultado de uma falta de manutenção geral”.
Depois de 45 anos, o MAM cita a tragédia pela primeira vez em uma abordagem documental em exposição: “Museu-escola-cidade: o MAM Rio em cinco perspectivas”, mostra em cartaz atualmente até 3 de dezembro de 2023, relembra a história do museu com mais de 500 itens do acervo, citando não necessariamente o fato em si, mas na resposta da sociedade civil e dos artistas e outros profissionais da cultura.
A reabertura total do prédio foi anunciada oficialmente em outubro de 1989, com a exposição “Rio hoje”, que contava com pouco mais de 100 obras de 48 artistas brasileiros de forte atuação na cidade. Mas o Museu nunca mais foi o mesmo. A crise financeira foi agravada e, se antes tinha uma forte atuação educativa, social e experimental, estas foram enfraquecidas e deram espaço para uma atuação mais voltada para o acervo e exposições.
Cenário atual
Sem dúvidas, o contexto de inauguração dos Museus foi de grande significado e fortalecimento do setor cultural brasileiro. Mas será que atualmente não vivemos algo próximo disso sob a ótica institucional? Apenas no ano passado, tivemos a inauguração da Pinacoteca do Ceará, Centro Cultural do Cariri e Museu da Imagem e do Som – ambas estreando um foco cultural inédito no Ceará –, Pinacoteca Contemporânea, Casa SP-Arte e diversas novas sedes de galerias pelo país, todas apesar da situação pós-pandêmica e do governo federal repressor. Mas fato é que precisamos de estratégias de sustentabilidade e permanência para que as histórias sucessoras – de crises financeiras, incêndios e instabilidade – não se repitam.