Como a arte pode ajudar na saúde mental?

Para marcar o Setembro Amarelo, mês de prevenção ao suicídio, conversamos com a Dra. Amanda Amaral, psiquiatra e coordenadora de um ateliê de arte terapia dentro do Hospital São Vicente de Paulo, em Brasília.

por Emilly Chaves
12 minuto(s)

Homem pinta no Ateliê Livre, no Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo, SP, 1950. Fotos de Alice Brill via Acervo IMS.

Conheça o trabalho da Dra. Amanda Amaral, psiquiatra e coordenadora de um ateliê de arteterapia desde 2023, no Hospital São Vicente de Paulo, em Brasília.

No Setembro Amarelo, mês dedicado à prevenção ao suicídio, realizamos uma conversa com a Dra. Amanda Amaral. Durante a entrevista, ela destacou a importância dos afetos e das redes de apoio para a recuperação e reintegração social, além de explicar como a arte pode atuar como uma ponte nesse processo.

Para Dra. Amanda, as práticas artísticas desenvolvidas no ateliê do hospital só podem ser realizadas graças aos avanços dos olhares médicos em relação a arteterapia. E sem dúvidas, quanto a isso, devemos reverência as conquistas dos trabalhos desenvolvidos por Nise da Silveira (1905-1999), precursora na introdução da arteterapia no Brasil, que revolucionou o tratamento psiquiátrico ao substituir métodos agressivos por expressões artísticas.

Pacientes do Ateliê Livre, no Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo, SP, 1950. Fotos de Alice Brill via Acervo IMS.

A arte é uma ferramenta poderosa para acessar e tratar o inconsciente humanizando o cuidado com a saúde mental. As práticas artísticas criam ambientes favoráveis ao acolhimento e à reflexão interior, possibilitando a manifestação de símbolos inconscientes que são transformados e ressignificados através do compartilhamento com o grupo.

Leia na íntegra a conversa com a Dra. Amanda Amaral

AQA – Poderia se apresentar brevemente, contando sua formação e como começou a trabalhar com prevenção ao suicídio?

Dra. Amanda Amaral (AM) – Me chamo Amanda, sou médica, me formei na Universidade Católica de Brasília e em seguida fiz residência médica em psiquiatria no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Posteriormente fiz o mestrado em psicologia clínica na PUC – SP. Desde 2016 trabalho como servidora no HSVP, atuando como médica plantonista em Pronto-Socorro (PS) e como preceptora do programa de residência médica em psiquiatria da SES-DF. Na minha prática diária em atendimentos no PS lido constantemente com o suicídio, uma vez que esta é uma demanda frequente em pronto atendimentos psiquiátricos e a partir daí me interessei pelo tema da prevenção ao suicídio.

AQA – Há quantos anos você trabalha no ateliê no hospital? Como surgiu esse
projeto?

AM – O projeto surgiu em 2023, quando foi iniciada mais uma modalidade de residência médica no HSVP: psicoterapia. O hospital já era sede das residências médicas em psiquiatria e da subespecialidade psicogeriatria e, naquele ano, foi inaugurada uma segunda possibilidade de subespecialidade para psiquiatras que desejam se aprofundar em alguns temas da psicologia. No programa da residência médica em psicoterapia do HSVP, o residente tem um ano para aprofundar seus conhecimentos nas áreas de terapia cognitivo-comportamental (TCC), psicodrama e psicologia analítica. No campo da abordagem em psicologia analítica, dentre outras atividades, foi iniciada uma oficina de desenho na ala de internação psiquiátrica: os pacientes internados são convidados a frequentarem a sala onde a oficina acontece, para fazerem desenhos espontâneos. A oficina foi inaugurada em 19/07/24 e desde então tem frequência semanal com duração de aproximadamente 1h30.

AQA – Como é para você, uma médica, cuidar de um ateliê dentro de um hospital?

AM Sempre fui a favor da interdisciplinaridade ente psiquiatria e psicologia. Todo adoecimento e sofrimento psíquico está vinculada a fatores psicológicos e nós, como psiquiatras, devemos olhar e cuidar disso. Percebo, na minha prática, que o ateliê tem um aspecto multifuncional: ele funciona como instrumento de avaliação clínica, e isso enriquece a troca com o residente que está acompanhando o paciente na internação; ele facilita a comunicação não verbal e, muitas vezes, nos desenhos evidencia-se traumas, abusos e violência vividos previamente; ele melhora a compreensão do estado psíquico global do paciente e favorece o processo de elaboração da crise que levou à internação e isso melhora a adesão ao tratamento pós-internação e, consequentemente, o prognóstico do paciente. Por fim, acho importante ressaltar, que por ser uma atividade em grupo, a oficina funciona como uma figura arquetípica da Grande Mãe, que cuida de todos, cria um ambiente onde os pacientes conseguem acolher uns aos outros e amparar suas dores, a saudade da família, da casa, melhorando o ambiente tão frio e impessoal de um hospital de internação psiquiátrica.

AQA – Como você acredita que o seu projeto nos aproxima do futuro para os cuidados com a saúde mental?

AM – A saúde mental, durante muitos séculos, foi mal vista pela sociedade e pelas autoridades sociais, por isso foi negligenciada e desumanizada, como se qualquer transtorno psíquico fosse uma aberração da natureza. Diante de tantas dificuldades que enfrentamos diariamente nos serviços de saúde públicos do Brasil, uma atividade como esta que desenvolvo no HSVP é relativamente barata, por ser em grupo consegue abarcar a grande demanda que existe nos serviços de saúde públicos no Brasil e promove a humanização nos cuidados relativos aos sofrimento psíquico, medida tão necessária para acabar com estigmas e facilitar o processo de reinserção social de pacientes com transtornos psíquicos.

AQA – Qual é a percepção dos pacientes sobre esse atendimento? É uma novidade para a maioria? Como o processo os transforma? Eles se enxergam como artistas?

AM – Os pacientes gostam muito da atividade. Eu percebo que a novidade para eles é uma médica estar fazendo essa atividade com eles: eu geralmente não falo que sou médica, mas eles costumam me perguntar, então eu respondo. Eles tem algumas outras atividade parecidas com essa, mas comumente são realizadas por terapeuta ocupacionais. Os pacientes são convidados a irem para a sala onde a oficina de desenho acontece e vão somente se quiserem. Em uma mesa retangular eu deixo todo o material de desenho disponível para eles utilizarem o que quiserem. Eles se sentam nas cadeiras distribuídas ao redor da mesa e eu geralmente coloco músicas instrumentais brasileiras para eles ouvirem. A atividade geralmente acontece de forma bastante tranquila e muitos conversam sobre suas vidas, pedem músicas enquanto desenham. A troca de afeto envolvendo todos, inclusive a mim, que tento me manter em uma relação mais horizontalizada com eles, e os desenhos feitos ali, frequentemente carregados de afetos, ajudam a dar continência para o turbilhão de emoções que cada uma daquelas pessoas enfrenta em sua vida psíquica. As figuras representadas nos desenhos funcionam como símbolos organizadores da psique, pois conseguem trazer conteúdos inconscientes à consciência e dar forma a eles, favorecendo sua compreensão e assimilação pela psique. Dessa forma, tem uma função terapêutica organizadora importante. Respondendo à última pergunta, eu não acredito que eles se enxerguem como artistas: a arte geralmente é vinculada a um valor que alguém atribui a ela e os desenhos feitos na oficina tem um valor pessoal, interior, muito maior do que qualquer pretensão de validação externa.

AQA – Quais temas mais aparecem nas produções das pessoas que frequentam o
ateliê?

AM – Os temas que mais aparecem nos desenhos da oficina, em ordem decrescente, são: o sol, a árvore e a casa. Nesta semana apresento um trabalho em um Congresso da Associação Junguiana do Brasil em Salvador, sobre o símbolo do sol, figura tão presente nos desenhos feitos na oficina. Pretendo posteriormente abordar as outras duas imagens em outros trabalhos.

AQA – Conte para gente uma história que te marcou na convivência dentro do ateliê. Quais aprendizados mais significativos você tira da sua experiência lá?

AM – Acho que todos os dias que eu faço o ateliê, o afeto que recebo dos pacientes me transforma. Perceber que eles se sentem bem, acolhidos, que gostam, que conseguem rir e se divertir durante a atividade me realiza, me faz sentir que eu estou no caminho certo. Uma vez um paciente, no final da atividade, me convidou para dançar com ele. Após um breve período de hesitação, eu aceitei. Enquanto dançávamos, me senti humana e percebi que é essa humanidade que tem faltado cada vez mais às ciências médicas.

AQA – Como você acha que as oficinas de arte podem ajudar na prevenção do suicídio?

AM – Sabemos que um dos fatores de proteção do suicídio são os vínculos afetivos: pessoas casadas, com filhos ou rede de apoio tem menos risco para cometerem suicídio do que aquelas que moram só, não tem filhos ou tem fraca rede de apoio. Neste sentindo, oficinas de desenho, pintura ou outras atividades em grupo que permitam o relacionamento entre indivíduos e o estabelecimento de vínculos afetivos entre eles pode funcionar como uma forma de prevenção do suicídio.

Pacientes do Ateliê Livre, no Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo, SP, 1950. Fotos de Alice Brill via Acervo IMS.

Além do trabalho realizado por Dra. Amanda, muitos outros cuidadores de diferentes áreas do conhecimento são aliados nessa luta da prevenção do suicídio.

Confira alguns locais pelo Brasil que oferecem atividades culturais, ateliês abertos a comunidade e com atendimento para pessoas que buscam ajuda para cuidados com sua saúde mental:

  • CECCOs

Os Centros de Convivência e Cooperativa (CECCOs), são espaços públicos vinculados ao SUS (Sistema Único de Saúde) pelo Brasil que oferecem atividades voltadas ao cuidado da saúde mental e à inclusão social de pessoas em situação de vulnerabilidade, incluindo aquelas com transtornos mentais. A arte é ferramenta terapêutica que ajuda os participantes a expressarem emoções, desenvolverem habilidades criativas e promoverem o bem-estar emocional em um ambiente de convivência e desenvolvimento pessoal que se difere do atendimento nos CAPs.

  • APAEs

A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) tem unidades em todos os estados brasileiros e há mais de 66 anos oferece cuidados para pessoas com deficiências e suas redes de suporte, como pais e familiares. Lá são oferecidas atividades terapêuticas, incluindo arteterapias diversas em grupo ou individuais, para o paciente ou sua família.

Norte:

  • ⁠Projeto Saúde e Alegria – PA

A ONG trabalha com comunidades ribeirinhas da Amazônia e promove atividades de arteterapia em seus programas de saúde e educação. As oficinas de arte ajudam a desenvolver a expressão pessoal e comunitária, tratando questões como saúde mental, fortalecimento de identidades culturais e autoestima. Hoje atendem cerca de 30 mil moradores de comunidades rurais – sobretudo tradicionais, muitas das quais em situação de vulnerabilidade social – de Santarém, Belterra, Aveiro e Juruti.

  • ⁠Casa de Saúde Indígena (CASAI) – AM

As CASAIs oferecem serviços de saúde voltados para povos indígenas da Amazônia e utiliza a arteterapia como parte dos processos de cura e bem-estar dos pacientes indígenas. Trabalhos com artes manuais, pintura e música são realizados para integrar aspectos culturais e terapêuticos. O contato é feito por intermédio da Secretaria Especial de Saúde Indígena.

  • ⁠Casa Azul Amazônia – Manaus, AM

A instituição tem sede na Rua Luzia Contente, 92, bairro Dom Pedro, zona centro-oeste de Manaus, abriu oficialmente as portas no dia 21 de agosto desse ano e oferta serviços de psicologia, pedagogia, fisioterapia, fonoaudiologia, hidroterapia, serviço social, arte e pintura para mais de 400 crianças da cidade.

  • ArtisticaMENTE da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) – Macapá, AP

Vinculado ao Curso de Medicina e ao Departamento de Extensão (DEX), o projeto espera ser mais uma alternativa de apoio, com um espaço de trocas e melhorias à saúde mental de jovens amapaenses. As atividades precisam ser agendadas e compreendem oficinas de música e teatro, cineclubes e rodas de conversa online ou presenciais, nesse caso nas dependências da UNIFAP ou do Centro de Educação Profissional de Música Walkíria Lima.

Nordeste:

  • Centro de Convivência Recomeço Fátima Caio – Recife, PE

Recém inaugurado, localizado na Caxangá, o centro propõe a reabilitação psicossocial para recifenses, a partir dos 18 anos de idade, que estejam em sofrimento psíquico, por meio de oficinas artísticas e sem internação. O objetivo é possibilitar o retorno ao cotidiano e diminuir o estigma associado à dependência química e transtornos psíquicos.

  • Movimento Saúde Mental (AME) – Fortaleza, CE

A Casa AME (Arte, Música e Espetáculo) Dom Franco Masserdotti é um dos espaços do Movimento Saúde Mental que vivencia o acolhimento às pessoas através de sua atuação, realizada com a arteterapia. Tem como objetivo proporcionar às comunidades do Grande Bom Jardim e adjacência, um lugar para as pessoas desenvolverem expressões artísticas e práticas terapêuticas, proporcionando o autoconhecimento e alternativas ao tratamento emocional e de sofrimentos psíquicos, beneficiando a um público bem diverso, desde crianças, adolescentes, jovens, adultos, e usuários(as) da Palhoça Terapêutica e do Centro de Atenção Psicossocial – CAPS- Comunitário do Bom Jardim.

  • ⁠Projeto Axé – Salvador, BA

O Axé nasce em 1990, desde então atendeu quase 30.000 crianças, adolescentes e jovens subtraídos da pobreza educativa.  O Projeto Axé é uma Organização Não Governamental que trabalha na chave da educação para desenvolver o potencial dos jovens, as vivências com arte são um braço dos projetos capitaneados pela ONG.

  • ONG Dorcas – Natal, RN

Focada em apoiar mulheres em situação de vulnerabilidade, vítimas de violência doméstica e pessoas em processo de reabilitação. A ONG oferece arteterapia como parte de seu programa de fortalecimento emocional, ajudando a resgatar a autoestima e promover a superação de traumas através da expressão artística.

Sul:

  • Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro (NUTAL) – Porto Alegre, RS

A Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro foi fundada em agosto de 1990 como um espaço de reabilitação psicossocial da rede de saúde mental do SUS. É um lugar para as artes, inspirado nos ensinamentos da psiquiatra Nise da Silveira junto à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

  • Projeto A Arte Cura – Florianópolis, SC

Um projeto voltado para a arteterapia, trabalhando principalmente com pacientes hospitalizados e suas famílias, oferecendo oficinas de arte como forma de alívio emocional e reabilitação. O projeto é conhecido por sua atuação em hospitais e centros de saúde.

  • Casa de Apoio Viva a Vida – Curitiba, PR

Focada no apoio a pacientes oncológicos e suas famílias, a Casa de Apoio Viva a Vida oferece arteterapia como parte de seus serviços de assistência, ajudando os participantes a lidarem com o estresse emocional e o processo de tratamento através de atividades criativas.

Sudeste:

  • ⁠Ateliê Gaia – São Paulo, SP

O ateliê é gerido coletivamente por artistas convidados, com o apoio e acompanhamento da curadoria geral e pedagógica do Museu Bispo do Rosário. As relações estabelecidas continuamente com e entre os artistas do Ateliê despertam uma investigação de caminhos possíveis para ir além, considerando complexidades e subjetividades e rompendo com uma série de estigmas atribuídos aos usuários da rede de saúde mental.

  • Instituto Lar – Rio de Janeiro, RJ

O Instituto LAR tem diversas atividades que, de forma pontual ou continuada, auxiliam as pessoas em situação de rua a recuperar sua dignidade, autoconfiança e independência. Sua atuação é divida em 4 eixos, são eles: atendimentos individuais; atendimentos em grupo; atendimentos ao trabalhador; alimentação básica. Temos atividades que vão desde o banho, passando por oficinas de arte e música, até palestras informativas e grupos de apoio.

  • Casa Arte Vida – Rio de Janeiro, RJ

A ONG que oferece apoio a crianças, adolescentes e famílias em situação de vulnerabilidade social. Entre as atividades desenvolvidas, eles utilizam a arteterapia como uma ferramenta para promover o bem-estar emocional e o desenvolvimento pessoal.

  • Hospital das Clínicas – São Paulo, SP

Ligado à Universidade de São Paulo, ele oferece programas de arteterapia gratuitos para pacientes em tratamento, principalmente nas áreas de oncologia, psiquiatria e pediatria. Através da arte, os pacientes encontram uma forma de expressar suas emoções e lidar com o tratamento.

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