Você se reconhece como mulher e já sentiu seu corpo invadido, violado, agredido ou devastado? Muito provavelmente a maioria das mulheres que lerem esse texto pensará “sim”. E são tantas as formas e níveis de brutalidade que podem chegar de formas devastadoras ou, até, disfarçadas. Por isso, estes corpos estão, quase sempre, em estado de alerta para reagir. Para entrar em combate, se proteger, se defender, se adaptar ou se reconhecer em outras potências.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é vítima de feminicídio a cada 7 horas. Este é apenas um dos muitos dados e experiências que inquietam de Galciani Neves, curadora da coletiva Meu corpo: território de disputa, na galeria Nara Roesler. Compreendendo a ideia de corpo como território, Neves reuniu obras de 27 artistas que evocam experiências vivenciadas por corpos reconhecidos como de mulher.
Dividida em três núcleos, a mostra não entra num estado de vitimização. Ao contrário, responde às agressões com possibilidades de luta e resiliência. São territórios prontos para transformar dor em fúria e poesia por meio de denúncias afiadas e da consciência do próprio poder de adaptação, da força dos afetos e da importância de encontrar e compreender a própria existência.
Não haveria melhor obra para abrir a mostra e esse debate que Quando todos calam #2, trabalho já icônico de Berna Reale. Nesta performance, a artista, que também atua como perita criminal e reconhece, de muito perto, a essência e complexidade da violência, deita sobre uma mesa a céu aberto no Mercado Ver o Peso, em Belém. Seu corpo está nu e coberto por vísceras e, aos poucos, transforma-se em ponto de encontro dos urubus da cidade. Trata-se de um corpo exposto, vulnerável e colocado, quase diariamente, numa situação de violência. O trabalho marca o núcleo “A liberdade também é um combate”, onde é possível ver um conjunto de obras cuja força está na própria coragem em denunciar sistemas de opressão.
Ao lado de Reale, Sumé Vasconcelos, conhecida por investigar as relações conflituosas e imateriais entre seu corpo e os espaços físicos, muitas vezes marcados por narrativas e agressões coloniais. Em Memória demarcada, Sumé delineia a própria casa de 3 formas e tempos para tentar resignificar um incêndio que aconteceu no seu lar. O corpo e a casa aparecem, aqui, portanto, como um território mais íntimo que evoca a presença e a reconexão com afetos e com sua própria identidade. “Sua ancestralidade é negra e indígena e essa destruição da casa é algo muito simbólico e recorrente. O corpo da Sumé está ali diante de uma casa que agora é cinza, só lembrança”, comenta a curadora.
Entre os destaques está, ainda, a foto Corda dourada com minha mãe Elenice Guarani, de Tadáskía – uma releitura da obra Por um fio, de Anna Maria Maiolino. Na obra de Anna, a artista se conecta com a mãe e a filha por um fio de massa. Na sua versão, Tadáskía se liga às tias, à mãe e à avó por um fio dourado. A obra faz parte de uma série de foto-performances que a artista chama de “aparições”, onde aparecem, com frequência, materiais dourados que, fazendo referência ao ouro, buscam fazer comentários sobre a distribuição de riqueza. “O trabalho da Tadáskía é muito atravessado pelas convivências com as mulheres de sua família e primos. E esse trabalho está muito conectado com esses laços e relações que desenham quem ela é. Vale lembrar que é muito festejado, em sua família e vizinhança, o fato da Tadáskía ser artista e produzir muitos trabalhos ali na própria casa, amparada por essas pessoas”, explica Neves.
A obra de Tadáskía dialoga com Alma de Bronze, de Virgínia de Medeiros – o registro de uma matriarca em seu lar. Mas não trata-se de uma mulher qualquer: Virgínia fotografou Carmen Silva, importante liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, rodeada também pela família. “O olhar dela é muito impactante, simboliza muitas mulheres e matriarcas. E esta cena nos lembra que quase 80% dos lares brasileiros são sustentados ou geridos por mulheres”, pontua a curadora.
Anna Bella Geiger e Silva e Letícia Parente chegam representando artistas mulheres de outra geração, que abriram um importante caminho para essa discussão. Enquanto, Parente nos presenteia com uma visceral carta de amor, ressaltando formas de rebeldia quando o assunto é uma parceria erótica, Geiger aponta para as brutalidades visíveis ao longo da História da Arte.
A problemática da representação do corpo feminino nas artes visuais está diretamente ligada às construções de padrões de beleza. E é sobre isso que Nazareth Pacheco pretende decorrer ao criar seu vestido de navalhas, exposto na vitrine da galeria. Ela apresenta, aqui, um corpo que está em perigo, que corre risco. Mas que também amedronta, é combativo. Ao seu lado, o angustiante neon de Lívia Aquino revela um trecho de uma entrevista feita, durante a Comissão da Verdade, com uma mulher que foi violentada durante a ditadura.
Em “Fabular uma anatomia experiencial” nos deparamos com obras de artistas evidenciando o próprio corpo para falar sobre inventividade, adaptação, resistência e a habilidade em alinhar-se à lógica da multitarefa. Nesse sentido, a própria anatomia destes corpos é apresentada como possibilidade e potência de ação. Vania Medeiros, por exemplo, cria uma pintura na qual une o coração, o pulmão e o útero; enquanto Monica Ventura faz um autorretrato com seu filho único, mas que aqui aparece multiplicado – como se sua vida como mãe exigisse uma natureza polivalente. Já Daiara Tukano apresenta uma sequência de foto-performace em que ela tenta encaixar o próprio corpo numa estante. Ou seja, busca entender de que formas sua existência pode romper limites para entrar no mundo da academia.
“Corpo-floresta em desbunde” arremata a exposição com obras que revelam diferentes lógicas de luta. É o momento em que estes corpos encontram formas de re-apropriação de si – por meio do desejo, do gozo, da festa, do encontro, do afeto, da ancestralidade e da espiritualidade.
Não deixe de reparar na pintura Abenigo y Tchoua, feita por Hariel Revignet, e na série de foto-performace Dissolutions, de Rubiane Maia – ambas obras, feitas especialmente para a exposição, ressaltam o poder da conexão com a terra e com tudo que é atávico. Rubiane coloca o próprio corpo em contato com a terra, plantas e pedras de uma região nas Ilhas Canárias, Espanha, com a intenção de se dissolver na paisagem. Ela finca os pés na terra; deita ao lado de um tronco; procura enraizar-se. Uma ação que nasce do desejo de coabitar e co-criar com outros seres e entidades, cuja inteligência e memória estão presentes na própria materialidade.
Seguindo uma mesma lógica de reconexão com a ancestralidade por meio da percepção e encontro com a terra, entendida aqui como uma entidade maior, Revignet representa uma grande pintura onde aparecem mulheres nadando, lavando roupas, bebendo água e atravessando um rio que é alimentado por duas entidades maiores. “Dentro de uma lógica afro-indígena diaspórica, ela se coloca numa tentativa de ativar o corpo na terra, com a terra e como terra”, explica a curadora. A relação da artista com o pai, do povo Myene, no Gabão, é importante para o processo: Revignet geralmente faz um desenho ou pintura e manda a imagem para o pai sem dizer nada e espera o feedback. E ele começa, então, a discorrer, no seu dialeto, sobre tudo o que vê. Para ele, Abenigo y Tchoua nos apresenta águas que assumem o papel de um leite vital, que alimenta e contribui para a sustentação e reprodução da vida nos oceanos. São águas, terras e corpos resilientes e auto-curativos que precisam, de tempos em tempos, marcar novos contornos para continuar.