Cildo Meireles: o artista que fez da arte conceitual a mais democrática de todas

Com duas individuais em cartaz em São Paulo depois de um intervalo de cinco anos, Cildo segue fazendo uma arte de amplo alcance com muito bom humor

por Giovana Nacca
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Cildo Meireles na área de convivência do Sesc Pompeia, em São Paulo. Foto: JF DIORIO/ESTADÃO

Quando se fala em arte conceitual, o que majoritariamente ocupa o imaginário popular é a ideia de uma arte que exige um denso repertório cultural e teórico para ser acessada. Imagina-se que as obras estão destinadas a um público especializado e muito restrito, além de serem herméticas em seu próprio mundo, completamente afastadas de nossa vida real e cotidiana. Mas Cildo Meireles, o maior nome da arte conceitual brasileira, anda exatamente na contramão dessas expectativas e faz desse meio um dos mais populares da história da arte

Curiosamente, mas não à toa, entre a década de 1970 e o início dos anos 2000, o artista desenvolveu uma certa aversão ao movimento, não querendo nem ser relacionado a ele. “Eu estava um pouco aborrecido porque você ia a uma exposição de arte conceitual e ficava lendo textos de artistas – e tem poucas coisas piores do que texto de artista”, ele nos conta com seu habitual senso de humor. “A arte estava perdendo esse trunfo maravilhoso que é te ‘sequestrar’, te tirar daqui e te jogar em um outro espaço, outro tempo. Começou a ficar muito hospitalar, muito asséptica.”

A reconciliação de Cildo com o movimento veio então a partir do relato de um amigo que havia sido preso durante a ditadura e, para manter sua sanidade naquela solitária, ficava prestando atenção na frestinha de luz embaixo da porta e nas coisas mais banais que apareciam ali, como um fio de cabelo ou um papelzinho celofane de uma embalagem de maço de cigarro, e se perguntando o que o artista faria com aqueles objetos de descarte. Emocionado com o compartilhamento do amigo, Meireles passou a entender o potencial democratico desse tipo de produção que pode ser feita a partir de qualquer objeto banal. Ou seja, o que o afastou da arte conceitual e o que o reconectou com ela de forma definitiva foi a mesma coisa: o desejo de fazer uma arte que estivesse na boca e nas mãos do público.

Em 1970, a partir do convite do curador Kynaston McShine para a exposição “Information” no MoMA de Nova York – um marco na história como uma das principais exposições da arte conceitual –, o artista criou uma de suas obras mais conhecidas: “Inserções em circuitos ideológicos”. A série se iniciou com o “Projeto Coca-Cola”, sob o contexto da ditadura militar, onde ele decidiu gravar nas garrafas retornáveis do famoso refrigerante mensagens críticas ao regime repressivo, incluindo até instruções de como transformá-las em coquetéis molotov. As inscrições em branco nos recipientes transparentes passavam despercebidas nas lavagens industriais e só se faziam evidentes quando estes eram reabastecidos com a bebida. Ou seja, ele usou a própria estrutura consumista, atrelada a uma das marcas mais representativas do capitalismo, para denunciar o regime apoiado pelo governo estadunidense. Criando seu próprio sistema de comunicação, ele driblou os controles e censuras da ditadura para falar diretamente com o público sem intermediários, sem fazer alarde ou chamar atenção da polícia mesmo abordando questões políticas de forma totalmente provocativa.

Cildo Meireles, “Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola”, 1970

Mas havia também, como em todos os trabalhos de Cildo, um forte interesse formal: a ideia de camuflagem de suas intervenções nos objetos e a possibilidade de um único agente interferir e perturbar um circuito de escala tão grande. E claro, mais do que isso: o principal suporte de seu trabalho estava nas mesas dos bares e das casas dos brasileiros cotidianamente, portanto a obra poderia ser vista e feita por qualquer pessoa

Desta mesma linha de pesquisa, cinco anos depois, veio o “Projeto Cédula”, que consistia em carimbar notas de dinheiro com mais mensagens críticas, inclusive cobrando a responsabilização do assassinato do jornalista, professor e dramaturgo Vladimir Herzog. Como costuma dizer o artista, esta é uma série que “só existe no gerúndio”, somente enquanto está circulando e sendo atualizada à medida que ele sente necessidade. Assim, em 2019, para a sua grande exposição no Sesc Pompeia, Cildo também estampou cédulas de R$2 e R$5 com a pergunta que se manteve acobertada e sem resposta durante seis anos: Quem matou Marielle? – fazendo referência a vereadora do PSOL assassinada no ano anterior à obra. 

Cildo Meireles, “Marielle Franco”, 2021

É interessante dizer que Cildo nunca vendeu nenhuma de suas “Inserções”. Pelo contrário, quem o já encontrou sabe que ele anda com um bolo de suas cédulas no bolso e as distribui em todas as boas oportunidades. Obviamente esses trabalhos foram incorporados pelo mercado, provavelmente a partir de alguns que ganharam essas peças e venderam para outras pessoas. Hoje, elas são leiloadas, alcançando valores altos para um múltiplo de tamanha reprodutibilidade, e indo contra o próprio intuito de suas concepções, apesar do artista compreender a fetichização destes objetos como mais camadas conceituais agregadas ao trabalho.

O artista, depois de um hiato de cinco anos desde a sua memorável exposição “Entrevendo” no Sesc Pompeia, retorna agora ao circuito expositivo brasileiro com duas individuais em São Paulo: “Uma e algumas cadeiras/Camuflagens” na Galeria Luisa Strina e “Desenhos, 1964-1977” na Galatea

A primeira, traz obras inéditas de Cildo no país, originalmente idealizadas nas décadas de 1980-90. A peça central é a instalação “Uma e Sete Cadeiras” (1997-2023), que foi exibida pela primeira vez ano passado na Galeria Lelong, em Nova York, e faz referência direta à obra “One and Three Chairs” (1965), do artista Joseph Kosuth, considerada uma das obras germinais da arte conceitual. A segunda e última sala do espaço expositivo é preenchida com obras da série “Camuflagens”, feitas com objetos utilitários que se tornaram suportes para pinturas nas mãos de Cildo. “São basicamente pinturas sobre chassis diversos, que remetem a uma funcionalidade. Pintura camuflada em bancos, cadeiras, guarda-chuvas, objetos comuns, de uso diário. Sempre utilizando um objeto que seja constituído de um tecido e uma estrutura.”, ele explica. Essas peças são dedicadas a grandes nomes da história da arte: a cadeira de praia listrada homenageia Jasper Johns; o guarda-chuva homogeneamente preto e a maca com “branco sobre branco” refere-se a Malevich; e o banquinho de pescador a Volpi.

Já na Galatea, do outro lado da mesma rua, a mostra dá foco para os desenhos de Cildo, uma linguagem do artista que, apesar de menos afamada do que suas instalações, é, segundo o curador Diego Matos, “a prática mais onipresente em sua trajetória de mais de 60 anos”. É ela a tradução mais direta dos pensamentos do artista, além de ser completamente indissociada do processo de criação de seus trabalhos em outras linguagens. “Se o encontro com o papel na feitura do desenho é um dos momentos de maior intimidade e solitude do artista, é nele também que são reveladas as questões que melhor informam a sua arte; gesto de significativa honestidade.”, escreve Matos no texto curatorial que acompanha a mostra. 

Cildo Meireles, “Sem título”, 1967

Aos 76 anos de idade, Cildo Meireles segue elaborando obras que estreitam o distanciamento associado à arte conceitual, permitindo que essas não apenas sejam debatidas em uma mesa de bar, mas também cheguem até ela. Cildo não é um artista interessado em se comunicar apenas com o próprio meio, pelo contrário, ele prioriza o público, expandindo o campo artístico para propor um espaço de troca real, de relação direta. Então, nas palavras dele, “se você não tiver nada melhor para fazer”, visite as exposições em cartaz na Galeria Luisa Strina até o dia 30 de novembro e na Galatea até o dia 16 de novembro. 

Serviço:

Cildo Meireles: uma e algumas cadeiras/Camuflagens
Local: Galeria Luisa Strina
Período expositivo: Até 30 de novembro de 2024
Entrada gratuita

Cildo Meireles: desenhos, 1964-1977
Local: Galatea 
Período expositivo: Até 16 de novembro de 2024
Entrada gratuita

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