O que faz com que um artista seja proibido pela justiça de realizar uma performance nu? Ou que tenha que pagar uma multa por isso? Ou pior, que possa ser ameaçado de ir preso se continuar a desempenhar seu trabalho? Sabemos que as leis não são mundiais e que variam conforme o país, especialmente de acordo com sua política e costumes. Além disso, demarcadores de gênero, sexualidade, raça e classe social devem ser levados em conta para a compreensão das nuances que deixam as leis mais “flexíveis” para uns e “rigorosas” para outros. O que faz ser impossível analisarmos um artista em comparação a outro sem refletirmos sobre estes fatores.
No Brasil, após o violento palanque político gerado em cima da performance La Bête de Wagner Schwartz no MAM –SP em 2017, foi criada uma Nota do Ministério Público (NOTA TÉCNICA NO 11/2017/PFDC/MPF) para tratar especificamente sobre nudez em trabalhos artísticos em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesta, é possível observar que a nudez em performances artísticas é permitida contanto que não haja conotação sexual e finalidade de satisfação da lascívia própria ou de outrem. Entretanto, a nudez artística em espaços públicos todavia é algo nebuloso, sobretudo quando o artista não se encontra amparado por uma instituição cultural. O que faz com que este possa ou não ser julgado por atentado ao pudor e afins, dependendo de sua sorte e de seus demarcadores.
Pensando nisso, vamos falar sobre Chico Fernandes, um artista carioca que desde 2017 vem realizando uma série de performances nu em espaços públicos. Partindo do princípio que suas performances são esvaziadas de obscenidade, lascívia e conotação sexual, ele investiga a corporeidade em liberdade incondicional. Independente de suas limitações materiais, Chico Fernandes é um homem branco heterossexual cisgênero. Isso faz com que ele disponha de certos privilégios que outres não disporiam. E mesmo assim, o artista passou por dois processos judiciários, chegando a ser multado e recebendo proibições judiciais sobre a realização de seu trabalho.
Em 16 de janeiro de 2019 ele realizou pela segunda vez a performance Ciclista nu (em homenagem a Aimberê César) na Rua dos Andradas em Porto Alegre, efetuada pela primeira vez em 2018 no Largo da Carioca, no Rio de Janeiro. Com duração de três minutos, em Porto Alegre ele parou a ação um pouco antes do tempo estipulado, por causa de certos gritos de rejeição. Optando por não insistir no confronto, ele encerrou sua ação. Já vestido, foi abordado pela polícia a partir de denúncia de transeuntes e na sequencia encaminhado à delegacia, onde preencheu um termo circunstanciado que depois virou um processo encaminhado ao judiciário. Nas palavras do artista, “Aí já ocorre um erro de percepção da própria polícia, pois, em performances artísticas, é permitido a nudez, mesmo em espaços públicos, independentemente de qualquer autorização prévia, contanto que não haja lascívia. Além disso, na própria legislação criminal, a nudez não é passível de punição, não apenas a nudez artística. A polícia até pode, no máximo, pedir para que a pessoa coloque a roupa; mas, sem conotação sexual, a nudez não é crime, independente de quais sejam as razões para que ela ocorra”.
Na ocasião, houve uma grande repercussão da mídia local a respeito da ação, por vezes com maior destaque ao fato de ser um fato social insólito de ciclista nu em meio à rua de grande circulação de pessoas e comércio do que um artista performando. Pois bem, no dia primeiro de abril de 2019 aconteceu a audiência no Foro Central de Porto Alegre com Chico Fernandes. Já no início da audiência, o juiz e a promotoria deliberam pelo arquivamento do processo contanto que o artista não voltasse a repetir tal ato. Contra argumentando de não realizá-lo novamente em Porto Alegre, o artista fez com que o juiz e a promotoria aceitaram sua proposta. O caso foi arquivado e o réu absolvido.
Em 2002, como parte da Bienal Internacional de Arte de São Paulo, cerca de 1.200 pessoas posaram nuas no Parque do Ibirapuera para o ensaio Nude Adrift do fotógrafo estadunidense Spencer Tunick. Na ocasião, o trabalho foi abordado pela grande mídia com certo humor, sem tanto estigma religioso ou de cunho conservador. É certo que o artista estava amparado pela mais relevante instituição de arte contemporânea do Brasil, bem como por um passaporte dos EUA. Tendo como exemplo este trabalho específico de Spencer Tunick e a performance Imponderabilia de Marina Abramovic e Ulay, a Nota do Ministério Público menciona: “Nos dois casos citados, há uma tolerância social maior com a exibição pública de corpos nus porque os atos não buscam a satisfação da lascívia dos artistas ou do público, mas sim a expressão de uma ideia ou de um sentimento esteticamente apreciável e/ou reconhecido”.
Este ano, no dia 17 de março, Chico Fernandes realizou a performance Eu sou eu e o cavalo não é meu, em que subiu desnudo com um megafone na mão no monumento ao general Osório na Praça XV, no Rio de Janeiro. Amplificando sua voz pelo megafone ele falou sobre a liberdade de expressão artística, lembrou do artista Aimberê Cesar, fez críticas ao atual governo, ao próprio general em que estava sobre e destacou a urgência do avanço da vacinação. Por coincidência ou destino, neste mesmo período o Brasil alcançava a marca de trezentos mil mortos pela Covid-19, mesmo número de paraguaios dizimados na guerra em que general Osório comandava a cavalaria brasileira. Duas histórias de genocídio se encontravam naquele momento.
Diferentemente de Porto Alegre, a performance durou o tempo que o artista quis, na totalidade de seu desejo e limite físico, uma vez que nenhum policial se arriscou a subir no monumento para tirá-lo à força. Entretanto, quando ele estava descendo, cerca de seis policiais já o esperavam ao pé da escada. Quando pisou seus pés no chão, o artista foi encaminhado à delegacia, onde foi aberto um boletim de ocorrência contra ele. Em paralelo, neste mesmo dia, o vídeo de um transeunte que via a performance relata que “Ele disse que só sai de lá quando tiver vacina”. O vídeo circulou nos grupos de WhatsApp e virilizou nas redes, tornando-se o assunto mais comentado do dia no Twitter no Rio de Janeiro. Além disso, a ação circulou por telejornais das emissoras Bandeirantes e SBT e em jornais impressos de diferentes estados.
No dia primeiro de dezembro, o artista compareceu à audiência no VIII Juizado Especial Criminal Rio de Janeiro. Nesta, o juiz lhe “ofertou” uma Transação Penal de R$500,00, que foi reduzida para R$250,00 após o argumento da defensoria pública de que o artista encontra-se desempregado e com dificuldades financeiras. Além da multa, Chico Fernandes também foi proibido de performar nu no Rio de Janeiro pelos próximos cinco anos.
É pavoroso constatar que hoje no Brasil um trabalho de arte sem conotação sexual e lasciva de um artista nu tenha tomado estas proporções pela justiça. “Infelizmente, trabalhar com nudez em espaços públicos toca nesta questão, de provocação, entendida como partidária, na medida em que vivemos hoje um momento de repressão conservadora latente, legitimada pelas eleições de 2018. Mas o trabalho não se trata disso, apenas. É uma pesquisa sobre performance, imagem e experiência. Contém hoje uma dimensão política explícita. E o sensorial, o cômico e o estranho se politizam na medida em que se opõem às forças antidemocráticas.”, complementa Chico Fernandes.