O Brasil era um país triste aos olhos do intelectual e aristocrata Paulo Prado, um dos principais mecenas e articuladores da Semana de 22, como ele próprio define no polêmico Retrato do Brasil, ensaio sobre a tristeza brasileira, lançado em 1928. Os principais males seriam o passado colonial, a cobiça pelo ouro, a “luxúria” das mulheres indígenas e feitas escravas e a influência do romantismo como visão de mundo.
Já no Manifesto Antropófago, publicado no mesmo ano, Oswald de Andrade defende a alegria como “a chave para libertar o Brasil da subserviência cultural a qual estava submetido”, conta Patricia Wagner.
É dessa discussão que resulta Alegria, uma invenção, com curadoria de Wagner, e abertura no próximo dia 12 de fevereiro na Central Galeria. “Tomei esse caldo cultural dos anos 1920 como ponto de partida e principalmente a discussão em torno da psicologia do brasileiro. A ideia de povo alegre como autorrepresentação do brasileiro surge como herdeira desse debate. Debate que, na verdade, contribuiu muito pouco para um país marcado pela barbárie colonial e que foi alvo de exotizações e domesticações promovidas pela indústria e pela publicidade — esta última, jogando mais especificamente com a ideia de um Brasil sensual e exótico”, afirma a curadora.
A proposta é, então, analisar essas questões e apresentar a alegria como potência criativa, inventiva e revolucionária, mas também expor outras construções da Semana de 22 que seguem sendo refeitas.
As obras apresentadas se conectam com a proposta da exposição de maneira independente e não há ordem a ser seguida. No primeiro subsolo, a fotografia Zé Pilintra, 2017, de Guy Veloso, em referência à entidade de religiões de matriz africana, é apresentada ao lado de uma aquarela de Cícero Dias que incorpora memórias do meio rural, do nordeste e da cultura popular. Já o trabalho br de brasil – série brasão, 2021, de Mano Penalva brinca com o símbolo da Petrobras e a ideia da estética nacional reivindicada pelos modernistas — e posteriormente por políticos na elaboração de um imaginário ideal de Brasil.
Ainda no primeiro subsolo, desenhos de Yhuri Cruz feitos para pensar a cenografia da peça Pretofagia; uma espécie de mural de Randolpho Lamonier feito com achados que reuniu em suas andanças pelas estradas do Brasil (rádio de pilha, mini-ventilador, antena parabólica, chaves, pelúcias e por aí vaí); pintura de Nilda Neves com base em suas lembranças no sertão da Bahia; escultura de Thiago Honório na qual um pedaço de Pau-Brasil atravessa o livro homônimo de Oswald de Andrade e, por fim, uma gravura de Antonio Manuel que apresenta garrafas de Coca-Cola, marca que explorou como poucas a ideia de “povo alegre”.
No 1º andar, o tecido é um denominador comum entre os trabalhos exibidos. AVAF apresenta sua “Pintura cabeluda”, 2019, com cores quase palpáveis e fios que pendem de todos os lados da tela. Em sua instalação, Manauara Clandestina contesta a masculinidade expressa também nos modos de vestir, em ternos de cores escuras, e a ambição. Ela elege o operário para ocupar o topo da cadeia do trabalho. O coletivo #ColeraAlegria, que se organiza desde 2017 para fazer bandeiras e levá-las em manifestações contra o governo, também está presente. Os estandartes lembram que: “A alegria é subversiva” e “Pouca informação e muita manipulação são os males do Brasil”.
No 2º andar, o palhaço de Thiago Honório encapsula a contradição e a ambiguidade. O boneco (divertido ou assustador?) é feito de balas de coco que podem ser retiradas e devoradas ali mesmo. No mesmo espaço, há um letreiro de Santarosa Barreto e uma fotografia de Marcos Bonisson que mostra um menino negro dando uma cambalhota no ar numa praia da zona sul do Rio de Janeiro — Wagner incluiu o trabalho na exposição para enaltecer a alegria como subversão, como impulso.
Já Gustavo Torrezan utiliza diferentes tipos de madeira sobrepostas umas às outras com QRcodes acoplados. Os links direcionam para um projeto de uma rádio que o artista implementou na floresta amazônica, dando voz à minorias marginalizadas. Ao lado, a pintura de Carmézia Emiliano: a “Dança do beija-flor”, 2011.
Enquanto Carmézia evoca festas e rituais indígenas, Vivian Caccuri e Gustavo Von Ha protagonizam um clipe debochado de música sertaneja, vertente da cultura popular cooptada pelo agronegócio. Mano Penalva aparece de novo com seus brasões, dessa vez utilizando elementos da brasilidade (como bananas, cajus e tucanos) mesclados à símbolos militares.
Há também uma parede que incorpora a ideia de pulsão sexual como forma de alegria e sobrevivência, com trabalhos de Lourival Cuquinha e Luciana Magno feitos, literalmente, de gozo. Camila Sproesser retrata um bailado de animais da floresta e, Guy Veloso, uma gargalhada contagiante flagrada num terreiro.
O “Flora treme” (a semelhança com “Fora Temer” não é coincidência), do coletivo OPAVIVARÁ!, é interativo — o bate-panelas das janelas dentro da exposição.
“Quarta-feira de cinzas”, de Felipe Cohen, tem confetes capazes de furar pedra, mas não deixa de ser melancólico. “Eu ouvi esses dias a frase do Millôr Fernandes de que a distância entre a lágrima e o sorriso é o nariz”, lembrou Patricia Wagner. “Essa pedra é uma forma de lembrar que a tristeza é parte da pulsão de vida, mais uma prova de que esse debate entre povo triste ou alegre não faz sentido, tudo está em ebulição”.
Alegria, uma invenção
Data: 12 de fevereiro a 26 de março
Local: Central Galeria
Endereço: r. Bento Freitas, 306 – Vila Buarque
Funcionamento: segunda a sexta, das 11h às 19h; sábado, das 11h às 17h
Ingresso: grátis