Na última semana, a Pinacoteca Contemporânea abriu as portas para uma das exposições mais aguardadas do ano: “Sonhar a água — Uma retrospectiva do futuro (1964…)” da artista chilena Cecília Vicuña. Depois de passar pelo Museu Nacional de Bellas Artes, em Santiago, e pelo MALBA, em Buenos Aires, a mostra chega ao museu paulistano com cerca de 200 obras que percorrem as seis décadas de produção de Vicuña.
A artista e poeta, que iniciou sua produção na década de 1960 e hoje é celebrada mundialmente com o recebimento do Leão de Ouro na 59ª Bienal de Veneza, caiu em gargalhada quando o curador Miguel A. López sugeriu, em 2014, a ideia de uma retrospectiva de seu trabalho. A risada era sincera. Como sintomas de uma produção tão singular, que não se molda nas caixinhas coloniais pré-existentes pelo mundo, a ideia foi rejeitada por diversas instituições antes de chegar até aqui.
Na década de 1960, Cecília Vicuña emergiu na cena artística produzindo obras que sequer foram documentadas, tendo existido apenas “para a memória de alguns cidadãos”, como ela descreve. Fazendo uso de matérias-primas naturais, como madeiras, seixos e penas, ela criou o que chamou de precarios [precários], uma série de estruturas efêmeras que se mesclam às paisagens como forma de oferendas, que eram levadas pelo mar quando a maré subia. Esses trabalhos logo evoluíram também para rituais coletivos e performances orais baseadas na voz xamânica.
Nesta pesquisa, as peças mais destacadas são os seus quipus, esculturas feitas a partir de faixas de lã suspensas com nós atados pelo comprimento. Esta série é inspirada por uma tradição andina, que consistia em um sofisticado sistema de comunicação sensorial, para registro de histórias e cantos, como também para cálculos. Baseando-se na sua herança indígena, Vicuña dedicou uma parte significativa de sua prática artística ao estudo, interpretação e reativação dos quipus, que foram proibidos e extintos pelos espanhóis durante a colonização da América do Sul. Para a atual exposição da Pinacoteca, a artista criou especialmente para ocasião uma nova versão do seu site-specific “Quipu menstrual” (2006).
Diante deste panorama inicial de seu trabalho, poderíamos dizer que Cecília é uma artista amplamente conceitual. No entanto, paralelamente à criação dos precarios, ela fundou a Tribu no [Não tribo], um coletivo de jovens artistas e poetas santiaguenses, que justamente rejeitava qualquer conceitualização. Eles realizavam “não-atividades” performáticas e poéticas na cidade, como forma de oposição às forças conservadoras do Chile, que culminaram no regime ditatorial em 1973.
Algumas décadas atrás, Vicuña seria tranquilamente rotulada como naïf, assim como todos os outros artistas não-brancos, que pautavam assuntos populares em suas obras também o foram por não seguirem as diretrizes estabelecidas pelas escolas europeias. A palavra de origem francesa é traduzida como “ingênuo(a)” no português. No entanto, reduzir a produção da artista a essa categoria seria ignorar a maturidade, a complexidade e a intencionalidade de seu posicionamento ativista, que sustentam suas obras. Em suas pinturas, Vicuña usa cenas de realidades cotidianas como ponto de partida para tratar de temas, como meio ambiente, feminismo, política e sexualidade, sem tabus e com uma cabeça muito à frente de seu tempo.
Elementos folclóricos, fantasiosos e oníricos também são frequentes no corpo de trabalho de Vicuña – não à toa, ela foi destaque na Bienal de Veneza de 2022, cuja curadoria deu foco para artistas mulheres com produções surrealistas.
Na tela “Janis Joe (Janis Joplin and Joe Cocker)”, de 1971, dezenas de assuntos distintos são reunidos. Vemos Angela Davis fugindo da prisão – a ativista e filósofa estava encarcerada desde o ano anterior à obra, a partir de acusações sem procedência –, duas mulheres eroticamente entrelaçadas em um banheiro, uma Vicuña adolescente menstruando pela primeira vez e outra voando sobre um jardim, entre outras cenas que incluem a cantora Janis Joplin e o astro do rock Joe Cocker em combinações aparentemente aleatórias.
Também em 1971, Vicuña sonhou que visitava sua amiga Yoko Ono em Nova York, quando recebeu a notícia de que uma revolução indígena havia começado, culminando no assassinato do Papa Paulo VI. A visão deu origem a sua tela “Sonho”, que retrata o líder mundial da Igreja Católica cercado por indígenas com armas artesanais.
Ainda que essas decisões estéticas e inspirações, somadas às figuras metamórficas da artista, tenham uma inegável semelhança com o tratamento surrealista, como poderíamos classificar como “surreal” um trabalho tão profundamente enraizado nas realidades humanas?
Cecília Vicuña é Cecília Vicuña. Não existem comparativos ou categorias suficientes para prendê-la. Hoje, aos 76 anos de idade, ela tem e emana uma energia vital avassaladora – não há quem passe impune por ela. “Nós não sabemos de onde vem a energia, mas sabemos como sentir e como cultivá-la”, ela explica, acrescentando que reaprender a ouvir a natureza e o mundo ao nosso redor pode ser uma forma de nutrir essa potência.
Em outro momento, ela também afirmou: “Nossas células são ‘antecipatórias’, nós temos a habilidade de pressentir o que vai acontecer, uma habilidade apagada pela cultura ocidental” – o que pode parecer se referir à um poder místico, na verdade revela uma conexão e conhecimento profundos sobre o que é o ser humano e quais são suas capacidades. Esses são os poderes de uma artista que olhou para trás, e entendeu que aquilo que foi dizimado, só o foi porque representava uma ameaça para os colonizadores dominantes, que temiam a força e o avanço da cultura não-ocidental. As obras de Vicuña são, portanto, a concretização da máxima “o futuro é ancestral” ou, nas palavras da artista, “América-Latina é futuro”.