Vivemos em um momento de crise política, econômica e moral em que torna-se cada vez mais complexo (e triste) ser brasileiro. Ao mesmo tempo, estamos prestes a começar a comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna – evento que celebrou, em poucas palavras, uma renovação de linguagem e celebração da cultura brasileira e seus símbolos. Parece pertinente, então, visitar a mostra de Glauco Rodrigues que questiona, com muita ironia, símbolos, imagens e teorias nacionais.
Acontece que somos canibais abre na galeria Bergamin Gomide amanhã, dia 4 de fevereiro, reunindo obras criadas pelo artista gaúcho nos anos 1960. Autodidata, ele fundou, em 1951, o Clube da Gravura de Bagé junto com os colegas Glênio Bianchetti e Danúbio Gonçalves. O grupo, que tinha em comum claras simpatias pelo socialismo, passou a se dedicar à figuração, retratando paisagens da região, num ambiente basicamente rural. Em 1958, parte para o Rio de Janeiro onde associa-se à Senhor, uma publicação onde o amigo Carlos Scliar já colaborava, além de nomes conhecidos no meio carioca, como Clarice Lispector e João Guimarães Rosa, e os então novatos Paulo Francis e Jaguar – essa passagem pelo mundo editorial pode explicar escolhas estéticas de algumas séries como o uso de cores fluorescentes, brilhantes e vibrantes – empregadas até então quase que exclusivamente na publicidade, nas capas de revistas, nos cartazes de rua – e no uso de recortes de revistas e cartões postais para suas ácidas composições.
Depois de uma temporada na França, ele volta e participa da exposição Opinião 66, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, junto com artistas como Anna Maria Maiolino, Hélio Oiticica, Ivan Serpa e Lygia Clark. Desiludido após o Golpe de 1964, resolve contar a sua história visual do Brasil. Datam dessa época as telas do artista presente na exposição, com claramente em diálogo com a turma da Nova Figuração Brasileira – pense em Rubens Gerchman, Antonio Dias, Roberto Magalhães, Carlos Vergara, Carlos Zílio, além dos integrantes do Grupo Rex. Trata-se de uma “estética avessa ao que considerava ser o “hermetismo da arte moderna” ‘ , ressalta Lilia Schwarcz no texto feito para a exposição. O pintor passa a rever, então, obras brasileiras clássicas, temas ligados à identidade nacional – os indígenas, a natureza tropical, o futebol, o carnaval –, bem como assuntos vinculados à história nacional. A versão do artista da Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles, por exemplo, ganha pessoas anônimas e curiosas, crianças, casais e personalidades políticas – tudo, é claro, em ritmo de samba! Já o Derrubador de Rodrigues aparece com uma postura corporal idêntica à cena original, produzida por Almeida Junior, mas ao invés de se recostar numa rocha, apoia- se num duplo mapa do Brasil.
Como morava perto da praia, Glauco começou a retratar cenas cotidianas de banhistas, acrescidas da combinação de uma série de elementos simbólicos e inusitados – garotas de biquíni ao lado de militares; atores conhecidos, usando diminutas sungas, contracenando com pessoas anônimas e vestidas de maneira mais convencional; o Pão de Açúcar ladeado por frutas tropicais; a imensa escultura do Cristo Redentor convivendo com frases pop do tipo: “o que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca” ou “acontece que somos canibais”! Em Brasilianistas e Antropofágicas, o artista relê a antropofagia de Tarsila do Amaral e do movimento modernista paulistano para também devorar assuntos simbólicos da história do Brasil – as séries como Terra Brasilis (1970), Carta de Pero Vaz de Caminha (1971), No país do Carnaval (1982), Sete vícios capitais (1985), fazem parte da guinada pop do artista. Atento à eficácia simbólica, Glauco finalizou muitas telas sobre o Pão de Açúcar e centenas sobre São Sebastião, com o santo sendo personificado no corpo de artistas nacionais, e sempre cobertos de flechas. “Ao lado do processo antropofágico – e que o leva a traduzir e deglutir o Brasil a partir de pinturas que carregam, ao mesmo tempo, humor e crítica social –, Glauco impregna em suas obras uma clara carnavalização da cultura brasileira. O indígena, as frutas, o futebol, as passistas de escolas de samba… todos recebem cores tropicais e muitas vezes aparecem acompanhados de frases críticas; tudo num clima e num ritmo de carnaval”, ressalta a antropóloga. “A dissonância e o deslocamento entre as figuras e as circunstâncias apresentadas, o clima de festa, a brincadeira, são elementos que deixam evidente a veia satírica do pintor que, em tempos de ditadura, se negava a compactuar com os mitos e estereótipos criados e difundidos pelos militares”, completa. Um tropicalismo crítico que veio em boa hora. Não perca e vá de máscara!