“Sua arte nos permite refletir sobre nossa postura ética em relação ao país e a situação política em que vivemos’, escreveu o curador Julian Posada sobre a artista colombiana Beatriz Gonzalez. Aos 81 anos, González é uma das representantes da chamada geração de “mulheres radicais” da América Latina.
Inicialmente, ela era uma pintora tradicional, criando telas inspiradas em nomes como Vermeer e Velazquez. No entanto, logo começou a se interessar pelas imagens mal impressas dos meios de comunicação de seu país. O início de tudo, aliás, foi quando ela fez uma de suas obras mais famosas, Los suicidas del Sisga I, II e III, todos de 1965. “Esse trabalho foi inspirado por uma história que apareceu na imprensa sobre um casal jovem: o homem, guiado pela insanidade mística, convenceu a namorada a se suicidar, a fim de preservar a pureza do amor. Antes de pular da barragem do Sisga, nos arredores de Bogotá, o casal encomendou um fotógrafo profissional para tirar seu retrato. A foto foi enviada às famílias e, quando a notícia foi divulgada, foi amplamente reimpressa em preto e branco nos jornais locais. A qualidade ou “má qualidade” da imagem despertou meu interesse por isso. Fui atraído pela simplificação dos traços faciais, quase deformada pela discrepância”, explicou a artista em entrevista para a Tate Modern.
Em entrevista para o livro Espaços de Trabalho de Artistas Latino-americanos, ela revela: “Quando eu vi aquela imagem no jornal foi uma epifania e nesse momento entendi que precisava partir de imagens, fotográficas ou impressas, criada por outros. Logo depois, fui para a Holanda estudar gravura em metal. Lá não havia informações sobre a Colômbia, mas um amigo querido, que pensava que eu gostava de notícias terríveis, recortou todas as fotos dos crimes que haviam sido cometidos em Bucaramanga – província onde nós dois nascemos. E, quando eu cheguei, ele tinha esse pacote enorme para mim. Me interessei e fui a Bucaramanga algumas vezes. Lá tinha um jornal em que as fotos eram muito mal impressas, tinham pouca tinta e ficavam manchadas. E comecei a recortar também propagandas e outras imagens. Formei um álbum muito bonito de ambas as coisas”.
Passou, então, a usar cores ousadas e pintar figuras planas ( sem perspectiva ou profundidade) para representar imagens tiradas de revistas e jornais como um meio de documentar o clima político e social de sua terra natal. Com um humor característico, González chama isso de “pintura subdesenvolvida para países subdesenvolvidos”, ela sempre questionou a relação subordinada entre localidades marginais como a Colômbia e os centros hegemônicos de produção artística e cultural representados pela Europa e pelos Estados Unidos. Sobre as cores elétricas, a artista afirma: “A paleta e o tema das pinturas eram chocantes e desafinados. Eu deliberadamente queria que eles estivessem desafinados – essas eram as cores que vi nas vitrines das lojas, nas re-interpretações das imagens universais que foram feitas no Terceiro Mundo.
Apesar de um trabalho consistente e bastante reconhecido em seu país, artista ganhou destaque considerável no mercado internacional apenas quando apresentou Decoración de interiores na última Documenta de Kassel e teve uma grande retrospectiva no Pérez Art Museum de Miami. “Normalmente, usava a pintura universal como referência, mas assumiu um presidente tão ridículo [ Julio César Turbay Ayala em 1978], que fizeram até um livro de piada dele. Era uma pessoa grotesca. Então, decidi: “Eu quero ser pintora de corte!” Como o Goya, que foi pintor de uma corte muito estranha também. Então passei a cortar todas as fotos do presidente que saíam nos jornais e fiz uma exposição com desenhos dele. A culminação de toda essa inquietação foi a cortina Decoración de interiores, de 1981″, revela. “A cortina é uma obra irônica, pois todos estão felizes tomando uísque, Turbay Ayala aparece contente, imperturbável pelas atrocidades de sua política governamental e intocado pelos problemas do povo colombiano. Minha obra era tão engraçada, que não chamou tanto a atenção dos detetives”, continua.
Bienal de São Paulo
Em 1971 a artista – ainda muito jovem – veio com suas obras para representar a Colômbia na Bienal de São Paulo. Chegou no auge da arte conceitual e lembra, com divertimento, que não foi compreendida: “O senhor Oscar Landmann, que bancava a Bienal, não gostou nem um pouco. Ele nunca entendeu minha obra. E depois ficou amigo de um pintor abstrato, o Omar Rayo, e o levou por conta própria, para esconder das pessoas que eu estava representando o governo. Lembro que era muito branco, preto e branco. E eu levei todas aquelas cores! Era como a casa do Demônio!”
Arte e Vida: outros suportes
Os trabalhos variam de óleo bidimensional em pinturas em tela, desenhos, serigrafia e cortinas, até móveis reciclados tridimensionais (camas, mesas, mesas de cabeceira, berços, armários) e objetos do cotidiano (bandejas, TVs, caixas de charutos). “Estava questionando os materiais tradicionais que usava, quando descobri a pintura com esmalte brilhante – a usada em carros e publicidades, que naquela época eram de latão. Comecei, então, a pintar sobre metal. Era mais popular, mais grosseiro. Um dia acompanhei meu marido em uma loja de material de construção e acabei comprando uma cama de metal que tinha uma pintura imitando madeira. Quando chegamos em casa, coloquei a cama encostada na parede e percebi que tinha a mesma largura do quadro que eu tinha pintado um ícone popular, o Senhor Caído de Monserrate. Foi mágico! Então juntei as duas coisas e inventei os móveis de Beatriz González! A partir desse dia passei a pintar sobre berços, camas e mesas de cabeceira”, explica.
Não é Pop Art!
É preciso dissipar equívocos sobre sua posição no contexto mais amplo da arte colombiana e internacional do pós-guerra. Apesar de já ter sido selecionada para exposiçòes sobre a Pop Art americana, o trabalho de González não é um uma manifestação regional do movimento. Não podemos esquecer o contexto cultural de onde emergiu: trabalhando em Bogotá o objetivo da artista não era celebrar a cultura super consumista do pós-guerra, mas investigar o gosto da classe média colombiana, bem como o desejo popular e o consumo de obras de arte européias conhecidas. Nesse sentido, ela dialoga muito mais diretamente com a Nova Figuração brasileira – pense na A Bela Lindonéia, de 1966, ao lado do Los Suicidas Del Sisga 1965 – do que com Andy Warhol. González não termina, portanto, com a crítica previsível da representação implícita em qualquer forma de apropriação; seu projeto, em vez disso, baseia-se em uma avaliação mais ampla do estado da cultura em sua terra natal e sua relação com o persistente legado do colonialismo.
Colômbia e a violência
O período da história colombiana conhecido como La Violencia, marcado pela guerra civil na Colômbia transformou transformou González e seu trabalho. Ela passa, então, a retratar a dor colombiana sistematicamente com foco crescente nas comunidades indígenas, rurais e deslocadas.
Señor presidente, qué honor estar con usted en este momento histórico foram criados em resposta a um massacre em 1985, quando guerrilheiros armados fizeram muitos magistrados reféns no Palácio da Justiça em Bogotá. Os militares responderam bombardeando o prédio; matando guerrilheiros, magistrados e civis. “A imagem mais forte que tenho na mente é a do Presidente da República, cercado pelos seus ministros, enquanto o Palácio da Justiça incendiava. Os magistrados estavam gritando: “Façam alguma coisa! Nos tirem daqui!” E o presidente estava no Palácio Presidencial, a uma quadra do incêndio, tranquilo. Até que uma ministra diz: “Senhor Presidente, estamos vivendo um momento histórico.” Eles estavam felizes por estarem vivendo um momento histórico e não se davam conta de que os magistrados morriam queimados a poucos metros”, lembra. A primeira das pinturas de González mostra um feliz Presidente e seu gabinete, sentado a uma mesa com um buquê de flores vermelhas brilhantes no centro da mesa e soldados uniformizados ao seu lado. Na segunda pintura, que não possui as cores vivas da primeira, as flores são substituídas por um torso humano queimado. “Morreram umas 200 pessoas e, com elas, a justiça. Eu era crítica de forma divertida. E, de repente, eu entendi que simplesmente não podia mais rir. Nesse momento, passei a pintar a tragédia. Eu não tinha entendido, até então, a importância do narcotráfico na vida do colombiano. Por isso comecei a trabalhar com os mortos. Eu não os pintava no início – o que eu realmente queria pintar eram os sentimentos. Era uma pergunta sobre nós. Pintar a violência foi uma maneira de mostrar um pouco o país”.
A série Las Delicias nasce de mais um triste evento que marcou a História da Colômbia: Em 1996, houve um ataque feito pela guerrilha da FARC contra a base militar de Las Delicias. Vinte e sete soldados foram mortos e 60 sequestrados. Eles foram levados para um campo de concentração e nunca mais vistos. As mulheres colombianas não costumavam organizar protestos, mas suas mães começaram a fazer manifestações na Praça Bolívar. A artista tinha uma foto que haviam tirado em que estava com as mãos no rosto, pois não queria aparecer. Tive a ideia, então, de transformar essa foto na imagem dessas mulheres. “Busquei fotos delas nos jornais e fiz uma exposição com 35 mulheres chorando. No final, havia um autorretrato. Me pintei nua e chorando. Eu quis fazer o meu de corpo inteiro chorando. Foi impressionante porque eram muitos sentimentos e a maioria das pessoas viam e saíam chorando também. Não imaginei que causaria tanto efeito. Era a dor de uma nação inteira”, reflete. Se existe alguém que sabe traduzir essa dor, é Beatriz González!