Como curar um passado tão violento e intenso como o do Brasil Colonial? O artista e curador Ayrson Heráclito pesquisa elementos e narrativas da cultura afro-brasileira para propor formas de “exorcizar” nossa história. Heráclito abriu, esta semana, uma individual online que conta com 10 de suas mais importantes obras, produzidas entre 2004 e 2018, inaugurando a série Artistas promovida na plataforma digital do Videobrasil. O novo espaço virtual contará com conteúdo mensal que revisita ou dialoga com obras do acervo histórico da instituição.
Heráclito explora conexões políticas, sociais e culturais entre Brasil e África com foco particular no grande holocausto resultante da diáspora africana e nas religiões afro-brasileiras. Mais que um artista, ele é um sacerdote cuja produção estética e conceitual está estreitamente ligada aos rituais e à simbologia do candomblé: suas performances são, portanto, atos que conjuram e reorganizam energias e memórias. O artista utiliza os próprios remédios que os escravos trouxeram da África para “sacudir” poeticamente e transfigurar o legado da escravidão.
Desta forma, são onipresentes em suas obras alimentos simbólicos que dialogam com deuses originalmente provenientes da religião yorubá africana, além de elementos significativos como a espada-de-são-jorge, uma das muitas plantas trazidas pelos escravos africanos ao Brasil e símbolo do orixá Ogum, e o dendê. O azeite de dendê, presenta na videoperformance As mãos do epô, tornou-se símbolo do sangue africano e tem a função de legitimar como africana a religião dos Orixás.
Sacudimento, título da mostra, é um ritual de limpeza espiritual oriundo das religiões de matriz africana que se dá por meio o uso de buquês de folhas para afastar “eguns” (espírito mal assombrado ou alma penada) do ambiente doméstico, mortos que permanecem entre os vivos e causam toda espécie de incômodos e infortúnios. Em O Sacudimento da Casa da Torre, obra que esteve na 57ª Venice Biennale, o artista se vestiu de branco para “purificar” uma construção de 1550, em Mata de São João, na Bahia, que foi sede do maior latifúndio da história do Brasil e gênese da sociedade escravocrata brasileira. O artista e outros performances passam galhos e folhagens de romãzeira, aroeira, espada-de-são-jorge e outras plantas mágicas pelos espaços hoje abandonados. O ritual nasceu no candomblé jejê, mas ganha um questionamento muito além de crenças religiosas. Nesta performance, Heráclito buscou sacudir um único egum que assombrava o local: o senhor de escravos e, com ele, toda a violência do antigo sistema social da Bahia que, segundo o artista, irradiada até os dias de hoje, na pobreza e na desigualdade social de todo o país. “Trata-se de um ritual de ativação e apaziguamento de nosso passado colonial”, explica.
A mesma performance foi realizada na outra margem do Atlântico, mais especificamente na Casa dos Escravos, na ilha de Gorée, no Senegal – a última porta cruzada pelos africanos escravizados e transportados ao Brasil. O resultado desse ato performático deu dando origem ao filme O Sacudimento da Maison des Esclaves.
Na performance Buruburu, por exemplo, ele “limpa” o corpo dos visitantes com pipoca ( flor do doburu, em ioruba, ou “flor do Velho”), alimento de Omulu – o deus que comanda as doenças e, consequentemente, a saúde.
Sacudimento
Data: 5 de Outubro até 5 Novembro 2020
Local: Videobrasil online