A arte tem vários papéis, mas o seus dois principais e essenciais no momento que estamos vivendo ficaram bastante claro ontem durante as manifestações pela democracia e pelo fim da violência contra povos negros: registrar momentos históricos e contribuir para uma transformação social.
No último fim de semana, corajosos manifestantes arriscaram a saúde ao desobedecer as regras de isolamento para evitar a transmissão da Covid-19 para quebrar o silêncio do tradicional homem cordial (como Sérgio Buarque de Holanda bem definiu em “Raízes do Brasil”) e pacífico: Em diversas cidades do Brasil, milhares de pessoas se reuniram e se aglomeraram para lutar pela democracia e, inspirados pelo movimento #blacklivesmatter em todo o mundo que estourou depois da morte de George Floyd , marcharam para reclamar a violência constante contra corpos negros ( lembre-se: a cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil). Eles gritaram com o punho levantado e fechado e mostraram que já basta.
Esse tipo de movimento é urgente e importantíssimo, mas ele não teria tanta potência hoje se não fosse por bravos fotógrafos que foram até estas manifestações para registar lindamente este momento histórico no nosso país. Amanda Moraes, Andre Mantelli, Isabel Praxedes, Julia Nagle, Kamila Camillo, Lorrana Penna, Marcello Zambrana, Ricardo Stuckert, Rodolfo Amorim, Ronald Santos Cruz, Victor Moriyama, entre outros, presentearam e inspiraram que ficou em casa com imagens fortíssimas que certamente ficarão não só para a história do nosso país, mas também para a história da nossa arte. Em comum, alguns detalhes como o punho fechado e levantado que é um clássico do orgulho negro e símbolo da luta contra o racismo (repare nas obras de Emory Douglas para o Panteras Negras). É uma imagem muito comum nas imagens das marchas pelos Civil Rights nos anos 1960 e voltou às ruas do mundo todo nos últimos dias, inclusive no Brasil.
A frase “a carne mais barata do mercado é a carne negra” reaparece em algumas imagens dos manifestantes fazendo referência ao refrão da música A Carne, uma canção composta por Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti, em 1998, para o álbum de estréia do grupo Farofa Carioca. Gravada por Elza Soares em 2002, a música ganhou mais potência nos últimos anos por explora o tema do racismo e da estrutura social brasileira, dizendo, de uma maneira crítica, que o negro é menos importante diante da nossa sociedade.
No clipe de A Carne produzido em 2018 pela Conspiração há uma clara referência à Poder uma foto de Carlos Vergara, de 1976, em que três negros têm a palavra pintada no peito em meio ao bloco carnavalesco Cacique de Ramos. Não à toa, a mesma imagem foi inspiração para um jovem pintar a mesma palavra em seu peito…o ato rendeu fotos maravilhosas que já estão sendo comparadas à foto de Vergara.
O mesmo clipe começa com um garoto correndo com um dispositivo na mão que emite uma fumaça vermelha – sinal da combustão dos mais tóxicos gases, tóxico como o racismo estrutural construído no Brasil ao longo das últimas centenas de anos. A mesma fumaça vermelha foi lançada ontem pela artista Debora Bolsoni durante o protesto no Largo da Batata. Ela se espalhou pela cidade ao lado de uma fumaça preta para fazer referências às cores da bandeira antifascista.
“A ação foi coletiva e junto com a galeria Reocupa. Há 3 semanas estamos nos preparando para fazer o nosso manifesto e encontramos espaço na primeira manifestação na Paulista organizada pelas torcidas. Soltamos as fumaças nos arredores da marcha e eles responderam lá de dentro soltando as fumaças antifascistas”, explica a artista que distribuiu o dispositivo para quem quisesse participar de casa. “A ideia era potencializar as manifestações de todas as formas. O combinado é que as pessoas que ficassem em casa iriam soltar as fumaças e fotografar para fazermos uma ação conjunta no domingo.”, completa. Entre os participantes que se solidarizaram com os artistas e com momento que estamos vivendo, está ricardo kugelmas – idealizador do Auroras, espaço de independente de arte de São Paulo.
“Se a fumaça era então entendida como sinal perigoso, alarmista, provocador, indutor de desconfiança (proibida junto a torcidas no estádios, por exemplo) há que se enxergar a via de mão dupla que as fumaças nas últimas manifestações representam. Foram vistas há pouco junto a uma rara união de torcidas paulistas em alerta contra o fascismo. Fascismo sim, que não se banalize o termo, mas que se dê nome às atitudes deste governo. Fumaça sim, como desejo de novos ares, de renovação espiritual, de louvação a entidades sagradas (o catolicismo, religiões de origem afro, povos indígenas e uma série de rituais de cura confluem no uso de fumaça). Faz-se sinal de fumaça em pedido de SOS ao SUS, em socorro das políticas públicas, contra a política enfumaçada e entorpecente que apaga o corpo que vibra, impede a vida, e que afasta a viabilidade de futuro. E a aparente imaterialidade da fumaça não pode turvar o que ela representa”, explica o texto elaborado pelo coletivo que idealizou o protesto.
Não estamos acostumados a nos indignarmos e lutarmos por nossos direitos como vimos com frequência em outras partes do mundo. Mas já basta! E é exatamente sobre isso o trabalho do pintor No Martins que também esteve nas manifestações. No denuncia a violência contra corpos negros há alguns anos em suas pinturas e na série apresentada no Videobrasil do ano passado ele lançou a hashtag “já basta”. O mesmo enunciado estava nas bandeiras que o artista carregou para o Largo da Batata. “Todo ano a polícia mata geral no Brasil também, e não só mata: quando colocam essas pessoas atrás das grades por puro preconceito eles geram um outro tipo de mortalidade. Não é só sobre George Floyd ou João Pedro, ano passado um garoto de 19 foi morto no supermercado Extra exatamente como o George Floyd. Não podemos mais ignorar essas vidas. Eu vim aqui para somar e contribuir com esse movimento!”, anunciou o artista. Vidas negras importam.