Yhuri Cruz é um artista de produção prolífera que não cabe nas caixinhas da arte contemporânea. Ele é, acima de tudo, um viajante do tempo que cria narrativas cruzando realidade e ficção para reinventar passados e fundamentar novos futuros.
Apesar de produzir trabalhos profundamente complexos em suas teorias e conceitos, Yhuri nunca estudou artes formalmente. Quando jovem, ainda no colégio, sonhava em ser um diplomata, por isso cursou Ciências Políticas. Por mais que possa parecer uma área distante de sua atual profissão, basta alguns minutos de um olhar interessado sobre suas obras para enxergar as relações entre a faculdade e sua dedicação em personificar agentes de poder, criar diálogos e estabelecer espaços de negociação.
Durante dez anos de sua vida, o artista carioca trabalhou dando aulas de inglês e, a cada três anos, ele juntava todas as suas economias para fazer uma viagem internacional. Foi assim em 2014, foi assim em 2017, mas em 2019, o dinheiro guardado foi usado para a sua primeira individual: Pretofagia. “Foi a maior viagem da minha vida, foi a viagem da minha pesquisa artística”, Yhuri analisa.
Vida, estou comendo você
Hoje, “pretofagia” é como o artista se refere ao seu corpo de trabalho. O termo surge a partir de suas pesquisas sobre revisões críticas do modernismo e do conceito de antropofagia. Mas, aos poucos, esse conceito foi crescendo dentro do artista e ganhando novos significados. Hoje ele defende a “autofagia preta”, ou seja, pessoas pretas que se alimentam e se nutrem de si mesmos.
Numa linguagem profundamente contemporânea, o artista borra as barreiras entre as diversas formas de arte, como teatro, artes visuais e produção textual, e atua no encontro delas. Todas as suas obras, sejam elas produzidas em quaisquer linguagens, nascem sempre da escrita de uma narrativa: “Hoje eu tenho dúvida se sou escritor que faz arte ou um artista que escreve”, pondera. Yhuri também explica que seu interesse está baseado na tentativa de trazer para os museus algo que as artes cênicas conquistaram com maior êxito: a atenção do público. “Nas artes visuais, o vínculo entre o espectador e a obra é muito curto, o pessoal olha uma obra por 30 segundos, 1 minuto, no máximo 3 minutos e parte para outra. E é normal. Mas o público do teatro fica 1h30 assistindo uma peça. Então, a pretofagia tem por essência o interesse de cativar o público das artes visuais a ficar por mais do que apenas 1 minuto ali”, desenvolve.
Em termos práticos, seu trabalho é interessado na encenação de ficções-históricas pretas. O artista analisa que toda massa cinematográfica europeia é baseada em referenciar mitos e histórias greco-romanos, nórdicos ou egípcios embranquecidos. Ele explica: “Se você parar para ver, Harry Potter ocupa um lugar de herói, que às vezes é Perseu, às vezes é Aquiles. A minha intenção é fazer algo dentro dessa mesma lógica: reencenar histórias pretas com outros personagens e contextos”.
Uma das suas primeiras ficções poéticas, que lhe abriu portas no circuito de arte e que já apontavam para sua produção atual, foi realizada em 2017. “Projeto Para Jardim de Pedra” consiste numa manipulação digital que traz a imagem do Palácio Duque de Caxias – um prédio histórico que já foi sede do Ministério da Guerra na Era Vargas – no formato e contexto do Pão de Açúcar e do Morro da Urca, no Rio de Janeiro. A narrativa fabula a ideia de que, em 1930, existiu uma vontade de fazer o Ministério da Guerra no lugar onde é hoje o Pão de Açúcar, afinal a realidade histórica nos conta que, na época em questão, a cidade passou por um processo de desmonte para erguer prédios no estilo fascista, pavimentar a Av. Rio Branco, dentre outras construções atuais.
Em 2018, o artista fez uma pesquisa quantitativa a respeito do total de pessoas pretas que exerceram atividade na Escola de Artes Visuais do Parque Lage desde 2014. O números eram lamentáveis: apenas 3% do corpo pedagógico era composto por negros; o número de curadores negros era quase 6 vezes menor do que o número de não-negros; e apenas 20% dos alunos que passaram pela instituição eram negros. Diante de tudo isso, Yhuri elaborou seu trabalho “Monumento-Documento à Presença”, um contrato onde a instituição se comprometeria a ter 50% dos alunos, professores e artistas pretos em todas as atividades da escola. Na época, os dirigentes se recusaram a assinar a proposta do artista, porém, em 2019, eles cumpriram todo o projeto sem incluí-lo ou mencioná-lo na ação. “O que aconteceu foi um roubo de narrativa”, recorda Yhuri.
Yhuri revelou a boca de Anastácia e ela, por sua vez, revelou o artista em âmbito nacional e histórico
Muitos vieram a conhecer Yhuri ano passado, quando a cantora Linn da Quebrada entrou na casa do Big Brother Brasil vestindo uma camiseta que exibia a obra de 2019, chamada “Monumento à Voz de Anastácia”. O trabalho em questão se apropria do retrato de 1817, pintado pelo francês Jacques Etienne Arago, que exibia a santa Anastácia escravizada e torturada com uma máscara de flandres. O maior objetivo da obra de Yhuri era poder disseminar o sorriso de uma Anastácia livre, ao ponto de sobrepôr a imagem colonial amplamente venerada durante séculos por devotos das religiões de matriz africana e católica. Assim, quando Linn da Quebrada, uma travesti e uma das principais atrações da edição do reality show, entra na casa e o Brasil inteiro volta seus olhos para a camiseta, a cantora contribui para o auge do conceito da obra e estabelece, de fato, um monumento à voz de Anastácia na maior audiência televisiva do Brasil. O feito também foi registrado na história, e agora a nova versão da santa chega às salas de aula e integra os livros didáticos de 200 escolas da rede Eleva.
Agora, a mais recente viagem do artista se dá no espaço. “Revenguê”, em cartaz no Museu de Arte do Rio, é uma dramaturgia futurista sobre um planeta imaginário, onde novas obras são construidas diante do público. Desde sua abertura, a exposição foi um sucesso de bilheteria: o espaço, que estava preparado para receber 100 pessoas simultaneamente, abrigou 400 espectadores. Em apenas dois dias, a mostra atraiu 4 mil pessoas, o equivalente ao dobro de visitações que o museu costuma receber normalmente. Com ela, Yhuri cumpre seu objetivo de lotar as instituições, como se enche um teatro. Ele prova que museu e galeria podem ser um lugar de espetáculo, e que entretenimento e conceito crítico não precisam ser caminhos antagônicos, mas podem coexistir no circuito amplo de arte.
Yhuri Cruz é um dos raros artistas que realiza uma individual em um museu de grande porte nacional como o MAR e, ainda assim, não tem representação em galeria. Seus trabalhos conceituais, apesar de serem vendidos, não possuem apelo expressamente mercadológico, e é diante disso que se dá a necessidade de uma aposta: “Eu preciso de uma galeria corajosa, que compre a ideia do meu trabalho”.
Em tempo: próximas encenações de Revenguê acontecem no próximo final de semana, nos dias 03 e 04 de junho. No mês seguinte, o artista estará em São Paulo, compondo a exposição “Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro” no Sesc Belenzinho e, ao final de julho, estará no CCSP. Fique de olho!