Um dos primeiros povos indígenas a ter contato com os europeus, após a invasão portuguesa em 1500, os Tupinambá têm uma história marcada pelo etnocídio e constantes apagamentos. Tendo testemunhado o brutal extermínio de seus parentes, a tomada de território e imposições culturais, este povo já foi, inclusive, ampla e erroneamente mencionado como extinto. Entretanto, eles ainda resistem, desafiando não apenas a história que lhes foi imposta, mas também os obstáculos contemporâneos que insistem em ameaçar seu direito de existência – evidenciados recentemente na luta pela demarcação de terras indígenas e na oposição ao marco temporal.
Hoje, remanescentes Tupinambá emergem também na cena artística, impulsionados pelos esforços de figuras como Jaider Esbell, Sandra Benites, Ailton Krenak, Denilson Baniwa e Naine Terena, que há anos vêm abrindo caminhos para que artistas indígenas de diferentes povos pudessem ser incluídos nestes espaços. Vale destacar também, a atuação de Célia Tupinambá, que recentemente trouxe maior visibilidade para seu povo ao retomar a prática da confecção dos Mantos e atuar ativamente na revitalização e preservação desta tradição ancestral, participando, inclusive, do processo de negociação com a Dinamarca para a repatriação de um Manto que estava em Copenhague desde pelo menos 1699.
Deste contexto destaca-se Olinda Tupinambá, que nasceu e cresceu entre os Pataxó Hã-Hã-Hãe de Caramuru-Paraguaçu do sul da Bahia, e além de artista, é também jornalista, curadora, cineasta e ativista ambiental. Por meio da linguagem audiovisual, ela cria narrativas ficcionais que exploram assuntos prementes como a questão ambiental, a resistência étnica e a presença indígena na contemporaneidade.
Seu primeiro grande passo da carreira autoral que lhe deu notoriedade no circuito de arte contemporânea foi marcado por sua participação na exposição “Véxoa: Nós Sabemos”, realizada na Pinacoteca de São Paulo em 2020. Para a ocasião, ela criou o filme “Kaapora – O Chamado das Matas”, que, como o título indica, tem como personagem central Kaapora, uma entidade protetora das florestas e dos animais. A produção, que tem características oníricas, se desenvolve em torno da luta pelo território dos Pataxó, entendendo a ligação espiritual dos povos indígenas com a terra.
Dois anos depois, a artista retorna à instituição com mais uma produção de destaque. Na videoperformance intitulada “Ibirapema”, Olinda encarna a personagem homônima e nos conduz por um percurso que parte da Bahia em direção a São Paulo. A obra, criada em meio aos movimentos de revisões críticas à Semana de Arte Moderna que compunham as celebrações de seu centenário, traça uma analogia sobre como a modernidade e o modernismo, impostos às populações indígenas, extermina identidades. O título da obra refere-se ao bastão tupinambá, um elemento importante do ritual antropofágico, o qual foi apropriado pelo movimento paulista de 1922. Ao realizar o trabalho para uma instituição de grande relevância nacional como a Pinacoteca – espaço onde por mais de um século artistas indígenas raramente se viram representados – Olinda faz sua própria antropofagia.
Outra particularidade significativa na produção da artista se dá na constante representação da perspectiva feminina, seja dando protagonismo às mulheres ou abordando temas que ecoam as experiências intrínsecas à condição delas. Isso é evidente, por exemplo, em seu filme “Lili”, uma citação à mitologia de Lilith. Afastada das temáticas estritamente etnocêntricas, a Tupinambá aborda no vídeo questões que perpassam diversas mulheres, apresentando uma crítica às imposições, expectativas e restrições que a sociedade impõe a elas por meio dos relacionamentos heteronormativos. Coincidentemente ou não, este é um de seus filmes menos distribuídos, fato ao qual Olinda atribui como reflexo das expectativas da indústria cinematográfica e artística, que esperam que artistas indígenas abordem apenas pautas identitárias. “Eu acho que a maioria dos indígenas passa por esse processo de ter que falar sobre território, porque isso tem a ver com a sobrevivência da gente”, ela reflete, ao compartilhar sobre sua resistência à restringir sua expressão artística e ser confinada por essas expectativas: “Nós somos mais do que isso”.
A Tupinambá também ressalta a importância, para o próprio circuito de arte, da inclusão de profissionais indígenas no meio. Ela compreende este processo para além das abordagens pseudo-solidárias que buscam beneficiar artistas marginalizados, mas como prerrogativa para evitar redundâncias e enriquecer as pautas levadas para a sociedade. Entretanto, ela reflete que ainda há uma ampla preferência desses agentes por artistas indígenas autodeclarados, por geralmente estarem mais próximos da região sudeste, onde se encontra a maior concentração de museus e galerias de arte. Em contrapartida, artistas que vivem nas matas de outras regiões do país, demandam maiores investimentos para a locomoção e, portanto, são menos visibilizados.