Em julho, duas notícias envolvendo o uso de inteligência artificial e arte generativa acenderam debates sobre o papel dessas tecnologias no campo artístico – e se seus resultados podem mesmo ser considerados “obras de arte”.
O caso mais chocante foi o de Ai-Da, robô artista que teve uma obra encomendada pela ONU como parte da “Cúpula IA para o Bem” de 2025. O evento reuniu especialistas, governos e empresas para debater como a inteligência artificial pode gerar impacto social e ambiental positivo, alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Revelada durante a semana da Missão do Reino Unido em Genebra, a tela “Algorithm King”, com predominância azul, retrata o monarca britânico Rei Charles III.
Antes desse feito, em 2024, Ai-Da – designada como de gênero feminino – tornou-se a primeira robô com inteligência artificial a vender uma obra em leilão. Sua pintura “AI God: Portrait of Alan Turing”, um retrato do cientista da computação britânico que ficou conhecido por decifrar os códigos de comunicação utilizados pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial, alcançou cerca de R$ 6 milhões após receber 27 lances. A obra foi arrematada por um comprador não revelado em uma sessão da Sotheby’s em Nova York.

Criada pelo galerista Aidan Meller e descrita como a primeira artista robótica ultrarrealista do mundo, Ai-Da pinta com câmeras nos olhos e braços mecânicos, além de escrever textos poéticos e acadêmicos. A pergunta que surge é sobre autoria. Afinal, quem assina de fato essas obras, a máquina que executa, o programador que a criou, o curador que a apresenta ou o próprio mercado que encena esse espetáculo?
Outro caso que atraiu atenção foi a obra em vídeo “Living Memory: Messi – A Goal in Life”, do artista turco-americano Refik Anadol, inspirada no gol favorito de Lionel Messi na final da UEFA Champions League de 2009. A obra utiliza milhões de pontos de dados – incluindo movimentação corporal (17 pontos mapeados), padrões biométricos como respiração e batimentos cardíacos, além de entrevistas com o jogador – para criar oito minutos de imagens em mutação, entre abstrações cromáticas, registros em campo e representações digitais do corpo de Messi. Arrematada por US$ 1,87 milhão em um leilão da Christie’s, entre 8 e 22 de julho de 2025, a peça foi exibida publicamente no Rockefeller Center em Nova York e a renda foi revertida para iniciativas educacionais em países da América Latina e Caribe via Inter Miami CF Foundation em parceria com a UNICEF.
Uma realidade incontornável
Casos como os de Ai‑Da e Refik Anadol deixam claro que a inteligência artificial já faz parte do mundo da arte e não vai desaparecer. A questão é entender até onde essa presença pode chegar. Os debates sobre ética, autoria e originalidade deixam de ser teóricos e entram no cotidiano de museus, galerias e leilões.
As ferramentas generativas despertam perguntas que não cabem mais adiar. Qual é o limite para esse tipo de criação? Que dilemas legais e morais entram em cena quando algoritmos assinam obras que circulam no circuito internacional? E até onde o gosto visual global ficará nas mãos das corporações que controlam essas tecnologias?
Embora a IA prometa democratizar o fazer artístico, permitindo que qualquer pessoa transforme ideias em imagens ou sons, carrega também as marcas do sistema que a produz. Produzida dentro de uma lógica capitalista, a tecnologia reforça um capital cultural e financeiro concentrado nas mãos de poucos, e tende a reproduzir desigualdades raciais, sociais e geopolíticas. Quem controla esses sistemas define não apenas quais dados alimentam a máquina, mas também influencia o que será visto, colecionado e valorizado como arte. Nesse contexto, a arte gerada por IA costuma esbarrar em limites de diversidade, cosmologias e modos de representação que não cabem nas bases hegemônicas que sustentam seu funcionamento.
Antes de ampliar esse debate, é necessário compreender que toda mudança tecnológica é cercada por narrativas sociais e carrega dimensões de soft power, capazes de alterar dinâmicas culturais, estéticas e simbólicas. Aqueles que comandam esses avanços também detêm o poder de influenciar noções de gosto e referenciais visuais, levantando questões sobre autoria, originalidade e acesso.
Por enquanto, a inteligência artificial ainda atua como uma replicadora da experiência humana. Falta‑lhe vivência, erro, intuição e imprevisibilidade – elementos que sempre fizeram da arte um território de transformação. Mas à medida que os sistemas evoluem e passam a gerar resultados inesperados e complexos, a fronteira entre simulação e criação se torna menos nítida. Surge então uma dúvida que não pode ser ignorada: se uma obra feita por IA conseguir nos emocionar, isso basta para que a consideremos arte?
Onde falta alma, a arte não faz morada
Não há dúvidas de que a AI seja capaz de gerar imagens, poemas ou músicas que muitos poderiam classificar como obras de arte. Portanto, de certa forma, esses sistemas aprendem as características necessárias para que o resultado seja aceito pelos padrões humanos e, assim, nos convençam de sua legitimidade. Em outras palavras, os algoritmos foram treinados para “nos enganar” – ainda que de forma involuntária.
A questão central talvez não seja se a IA “tem alma”, mas como nossa percepção cultural do que é arte pode mudar diante de obras que nos emocionam ou nos intrigam, independentemente de quem (ou do quê) as criou. A história da arte já mostrou que resistimos a novas mídias – fotografia, cinema, vídeo – até que elas fossem assimiladas como expressão legítima.
Entre fascínio e rejeição, a arte produzida com IA escancara mais sobre nós do que sobre as máquinas.
Seus limites atuais mostram a importância da intuição, do acaso e da imperfeição humanas, mas também nos obrigam a encarar uma pergunta inquietante: se uma obra feita por IA for capaz de nos emocionar, ela será menos arte por isso?
O futuro da arte talvez não esteja em negar a máquina, mas em negociar com ela – reconhecendo seus riscos éticos, seus impactos culturais e suas possibilidades como parceira de criação em um mundo em que a sensibilidade humana segue insubstituível, mas cada vez mais atravessada pelo algoritmo.