Anselm Kiefer – Onde estão as Flores?

Aclamado, celebrado e polêmico, Anselm Kiefer foi responsável por criar algumas das mais impactantes obras de arte contemporânea do mundo. Agora, o artista alemão protagoniza um projeto inédito em parceria com o Van Gogh Museum e o Stedelijk Museum Amsterdam

por Carolina Reis
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Anselm Kiefer. Foto: Georges Poncet © Anselm Kiefer

Quando começou a estudar arte em 1966, Anselm Kiefer já havia passado pela faculdade de Direito de Freiburg por alguns semestres, estudando também línguas românicas. Mas foi na Academia de Belas Artes de Karlsruhe, sob a tutela de Peter Dreher, que o artista de fato passou a pintar. Filho de um professor de artes, Kiefer nasceu poucos meses antes do final da II Guerra Mundial, crescendo rodeado pelo cenário devastador de um país em ruínas em vias de se reconstruir depois do conflito mais violento que a humanidade já havia testemunhado. 

É preciso apontar que suas primeiras investigações artísticas não envolviam tinta e tela, mas sim consistiam em performar a saudação nazista vestindo peças do uniforme militar de seu pai, que havia servido na Wehrmacht (forças armadas alemãs). Em 1969, Kiefer começou ensaiando o gesto em seu ateliê e nas áreas rurais do entorno de Karlsruhe, se fotografando com roupas estranhas e cenários inusitados, sempre executando o movimento “Sieg Heil” – criminalizado na Alemanha desde 1945. Depois, para poder performar em espaços públicos, viajou por países como França, Suíça e Itália, sendo clicado em plena reverência, registrando-se em cidades que tinham alguma conotação de autoridade imperial ou de um passado imperialista. Essa sequência de performances (intitulada “Occupations”) deu origem a centenas de fotografias, mas poucas foram reveladas, já que Kiefer não tinha dinheiro para muitas ampliações. As que de fato foram impressas ganharam o título de “Heroische Sinnbilder” (Símbolos Heroicos), sendo usadas para compor livros de artista e em ensaios fotográficos em publicações locais. 

Entre o final de 1969 e 1971, o artista passou a usar essas imagens “heroicas” como base para realizar pinturas em óleo e aquarela. Uma parte dessas obras foi exibida nos estúdios da Academia de Belas Artes de Karlsruhe, em seu exame final de graduação. Depois de debates furiosos entre seus professores, Kiefer foi aprovado com nota máxima – mas não sem antes ser questionado pelo uso da saudação nazista nos trabalhos. Tanto Dreher, quanto Rainer Küchenmeister (professor que havia passado por campos de concentração durante a guerra e cujo pai fora assassinado pelos nazistas em 1943), defenderam o aluno de maneira fervorosa, enxergando na figura controversa do personagem com a mão erguida em riste mais do que apenas uma provocação rasa. Apesar da aprovação da banca, Kiefer acabou destruindo o conjunto de trabalhos que apresentara ali. Em 1971, o artista tentou exibir outras peças desta série em um salão de artes de Stuttgart, mas foi rejeitado – a ironia das imagens, aparentemente, não era captada por todos os espectadores. Certas pinturas foram exibidas na Suíça em 1978 e, enfim, o restante da série ficou guardado no ateliê por mais de 30 anos, até que Kiefer realocou seu estúdio para Barjac, na França. A coleção, que estava em péssimas condições, foi restaurada e exibida em 2008, quando foi adquirida pelo Museum Würth.

Anselm Kiefer, “Símbolo Heroico VII”, 1970. Foto via Archive. Anselm Kiefer

Kiefer não estiva sozinho no seu desejo de explorar o imaginário nazista para confrontar os horrores do passado recente alemão, nem em suas ousadas tentativas de lidar com os fantasmas que continuavam a assombrar sua geração. Nomes como Georg Baselitz, Joseph Beuys, Gerhard Richter e Blinky Palermo também se aventuraram na reinserção crítica de imagens e símbolos fascistas em trabalhos artísticos, rejeitando o cânone abstrato – instaurado não apenas na Europa, mas especialmente na Alemanha – como forma de romper com tentativas de silenciar qualquer menção iconográfica nazista no pós-guerra. É claro que as referências às atrocidades das décadas anteriores deveriam ser operadas com cautela por esses artistas – mas abster-se da figuração completamente por causa da selvageria podia levar a um efeito indesejado: o esquecimento do horror, o possível apagamento de uma memória que, na verdade, permanecia indelével naquela sociedade. Tanto Kiefer quanto seus contemporâneos almejavam, também, enfrentar uma dura verdade: seus pais e avós (ou eles mesmos, no caso de Beuys) estiveram inseridos no regime nazista, seja trabalhando para o terceiro reich, apoiando Hitler ou, no mínimo, não opondo-se ao Nacional Socialismo. E essa herança indesejada (quiçá, maldita) foi melhor trabalhada, entre todos, por Kiefer.

Esse compromisso pessoal de abordar o problemático passado alemão também se refletiu nos suportes explorados e na escolha de materiais que ele passou a incorporar em seus trabalhos, o que incluía a realização de xilogravuras (a única técnica de gravação que Kiefer usa e que tem um papel tradicional, longo e relevante na história na arte alemã), e a incorporação de elementos como palha, alcatrão, chumbo, areia e plantas secas. Assim se vê em “Nürnberg”, obra de 1982, parte da coleção do The Broad, em Los Angeles. O título da obra refere-se à cidade histórica que, por muitos séculos, foi um dos mais importantes centros artísticos da Europa, sediando diversas corporações de ofício. Mas também à cidade escolhida por Hitler para sediar imensos comícios políticos antes da guerra. E, é claro, também à cidade escolhida para sediar o tribunal internacional que julgou os crimes hediondos do Holocausto depois de 1945. Todas essas histórias convivem de maneira fantasmática na obra, coberta por grandes massas de tinta e palha que quase ocultam as linhas do campo que levam à silhueta urbana distante ao fundo. 

Anselm Kiefer, “Nuremberg”, 1982. Via coleção de Eli e Edythe L. Broad, Los Angeles

Mas além de lidar com a memória alemã recente, o artista também incorporou referências pregressas distantes, mitologias germânicas, nórdicas e gregas, arcabouços religiosos judaicos e cristãos, e elementos da antiguidade egípcia e das cosmogonias orientais. Tanto é que, nos anos 1970, realizou um ciclo de pinturas em grande escala inspiradas pelo poema épico medieval que contava a história de Parzival, cavaleiro que sai em busca do Santo Graal. Das 4 grandes obras que compõem o conjunto, 3 delas integram hoje a coleção da Tate Modern – Parsifal I, II e III –, e foram feitas usando tinta óleo sobre papel e depois aplicando as folhas às telas. Os títulos referem-se tanto ao poema quanto à ópera homônima de Richard Wagner, encenada em meados do século XIX em Bayreuth. Os cenários das pinturas parecem revelar uma grande sala feita de madeira, para evocar a estrutura de um palco, mas são de fato o ateliê de Kiefer, que ficava no sótão de uma casa. 

A mitologia judaico-cristã surge de maneira direta em obras como a imensa “Lilith”, de 1987. Inspirada por uma visita a São Paulo – ocasião na qual o artista representou seu país natal na Bienal da cidade –, a cena da pintura realizada de volta em seu ateliê na Alemanha parece uma vista aérea enevoada de uma explosão de prédios e fumaça, algo que ele alcançou espalhando poeira, cinzas e terra sobre a superfície da tela. “O ponto de partida [para essas obras] foram fotos que tirei em São Paulo. Passei três dias fotografando a cidade de um helicóptero. São Paulo é uma metrópole de crescimento incrivelmente rápido. Há arranha-céus e, então, favelas. Pintei a cidade a partir dessas fotos”. O título faz alusão à lenda de uma primeira esposa de Adão, antes de Eva, que se recusou a se juntar a ele no Jardim do Éden e, por vezes, considerada como um demônio ou uma figura sedutora que atrai homens para situações de perigo. A ideia de destruição visualmente traduzida nessa versão apocalíptica da cidade é, então, reforçada pelo nome da pintura, que ganha, assim, camadas simbólicas para além da força chocante de sua imagem. 

Anselm Kiefer, “Lilith”, 1987-1990, via transfuge.fr

Já a mitologia nórdica pode ser identificada em trabalhos como “Midgard”, ou “Urd, Werdandi, Skuld (Die Nornen)” – algo como passado, presente e futuro, aludindo às entidades femininas que fiam os destinos das pessoas debaixo da árvore da vida (Yggdrasil). Também produzidas em escala monumental, essas pinturas representam diferentes mitos e histórias. A primeira retrata a grande serpente homônima, cujo destino incontornável é lutar no fim do mundo. Ao mesmo tempo, o formato da composição sugere uma estrutura arquitetônica romana, como um anfiteatro ou uma colunata. A segunda obra, por sua vez, traz um grande corredor abobadado, com paredes e pilares de pedras maciças, que parece não ter fim. A arquitetura do espaço, diferentemente da anterior, parece evocar os imponentes edifícios do período do Nacional-socialismo. No centro inferior da composição, uma fogueira queima, iluminando o espaço; já na parte superior, os nomes das entidades aparecem costurados com fios soltos, conjurando a imagem da urdidura das linhas da vida. A superfície pictórica foi construída com o acúmulo em camadas e fusão de diferentes materiais, como couro, fibras vegetais, resina, papel, giz e tinta a óleo. Kiefer, como em tantas outras de suas peças, chegou a queimar com um maçarico partes da obra, como se a pira ardendo ao centro pudesse, de fato, chamuscar a tela. Nas palavras do próprio artista, atear fogo às pinturas era uma tentativa de curar as imagens, tentando levá-las a um estado mais bruto.

Mas a pintura não seria mais suficiente para Kiefer exprimir todas as complexas redes de histórias, lendas, mitos, referências, alusões políticas e narrativas pessoais que se amalgamavam em seus trabalhos. A escala da escultura, portanto, impôs-se como necessária, inevitável. Foram 20 anos produzindo uma de suas maiores (e melhores) obras primas, “20 Jahre Einsamkeit”, ou 20 anos de solidão. A legenda da obra informa apenas “técnica mista”, e as dimensões impressionantes: 4 metros de altura, 5 metros de comprimento e 4 metros de largura. Seria possível redigir um grande texto apenas sobre essa instalação, tamanha a gama de possibilidades de leitura, de variedade de dados e referências, de diversidade de materiais… Primeiro, é possível identificar que a escultura é composta pelo empilhamento de pinturas antigas de Kiefer, de diferentes dimensões, esticadas em chassis ou soltas e enroladas, viradas para baixo – são obras criadas entre 1971 e 1991, inacabadas ou rejeitadas pelo artista. Depois, percebe-se a presença abundante de terra e poeira, entre as lâminas e no chão do espaço expositivo. E junto da terra, folhas secas, galhos, cacos de vidro, peças de roupa, chapas de chumbo, e tantos outros materiais que não necessariamente conseguimos distinguir. O formato da pilha lembra uma pirâmide, uma embarcação, uma pira pronta para ser incendiada. Em 1992, ao terminar este monumento pessoal, Kiefer decidiu se mudar para a França, tendo se separado de sua primeira mulher e recém aberto uma grande mostra na Neue Nationalgalerie, em Berlim. De um lado, a escultura parece documentar as duas décadas de trabalho do artista, uma espécie de epítome de sua vida e obra; de outro, é uma prova viva do passado de Kiefer que continua se transformando com o passar do tempo, adentro do futuro, já que a degradação dos materiais orgânicos e inorgânicos que compõem a peça é implacável, e sua decadência pode ser testemunhada pelo público a cada nova visita.

Vista da instalação, Anselm Kiefer, “20 Jahre Einsamkeit”, 1971–1991 © Kunstmuseum Wolfsburg, Foto: Marek Kruszewski

A partir de 2002, o concreto passou a ser incorporado em sua produção, material que é extraordinariamente trabalhado em “The Seven Heavenly Palaces” (2004-2015). A instalação foi concebida especialmente para a abertura do Pirelli HangarBicocca, localizado em Milão, em 2004. Inspirado por um antigo tratado hebraico chamado “Sefer Hechalot” (ou Livro dos Palácios, que narra o caminho da iniciação espiritual daquele que quer se aproximar de Deus), Kiefer construiu sete grandes torres feitas a partir de placas de concreto armado, moldadas usando chapas de contêiner; as placas, então, eram apoiadas e empilhadas até alcançar alturas entre 13 a 19 metros. Entre os pisos e tetos de cada “andar”, até o topo, o artista inseriu livros feitos de chumbo, colaborando para compor o peso descomunal das estruturas (cada uma pesa cerca de 90 toneladas); apesar do peso e da densidade deste material, contudo, esses livros comprimem-se gradativamente sob o peso do concreto, devido à natureza maleável do metal. De acordo com o artista, o projeto é, novamente, uma espécie de epítome de sua vida e obra: “The Seven Heavenly Palaces” representam o ápice e a síntese da sua produção artística, reunindo em um só trabalho os principais focos de interesse de suas pesquisas e materializando-os na mais ambiciosa obra de contexto específico que ele jamais havia realizado; eles carregam referências à antiga religião hebraica, representam a ruína da civilização ocidental após a Segunda Guerra e também imaginam futuros possíveis que nos ajudam a refletir sobre nosso presente. Em 2015, cinco grandes telas foram incorporadas à instalação: Jaipur (2009); duas pinturas da série Cette obscure clarté qui tombe des étoiles (2011); Alchemie (2012); e Die Deutsche Heilslinie (2012-2013). As obras acrescentam novas camadas à visão original do artista, como a relação entre o homem e a natureza, além de referências à história das ideias e da filosofia ocidental.

Parecia impossível, assim, que Kiefer se superasse depois da realização de uma empreitada tão ambiciosa. Contudo, durante a Bienal de Veneza de 2022 (ano da celebração do 1600º aniversário da cidade), a convite da Fondazione Musei Civici, ele criou uma instalação específica para a imensa “Sala dello Scrutinio”, no Palazzo Ducale, intitulada “Questi scritti, quando verranno bruciati, daranno finalmente un po’ di luce” – frase do filósofo veneziano Andrea Emo (esses escritos, quando queimados, finalmente lançarão um pouco de luz). O salão escolhido para apresentar o projeto abrigava os manuscritos históricos de Petrarca e Bessarion, base para a República Veneziana, e também a contagem dos votos das eleições locais desde 1532. Em 1577, porém, esta parte do palácio foi consumida em um incêndio que destruiu qualquer vestígio dos escritos e das pinturas magníficas que decoravam o espaço. 

Vista da instalação, “The Seven Heavenly Palaces” de Anselm Kiefer no Pirelli HangarBicocca, Milão. Via Google Arts & Culture

O ciclo monumental de pinturas criadas por Kiefer especificamente para este espaço, tanto evocava o incêndio passado, quanto apresentava elementos recorrentes em sua carreira. Víamos nas obras referências bíblicas judaico-cristãs como a escada de Jacó e os restos mortais de São Marcos, ou da mitologia grega, com representações do Hades; alusões ao mar de Veneza e à navegação (tão central na prosperidade da cidade); menções às histórias políticas tão particulares da região, às guerras e conflitos globais vividos mais recentemente; assim como questões que hoje assolam o local (hordas de turistas, produção de lixo descontrolada, o futuro desaparecimento da cidade, etc). Ao final da exposição, contudo, o conjunto foi também completamente destruído, assim como o fogo fez com as pinturas do século XVI.

Agora, em 2025, Kiefer renova seus ousados esforços, apresentando seu trabalho ao lado de um dos artistas mais conhecidos do mundo (e um de seus heróis pessoais): Vincent Van Gogh. Ele criou, especialmente para esta ocasião, um conjunto de novas obras em grande escala, que será exibido ao lado de peças de destaque das coleções do Van Gogh Museum e do Stedelijk Museum Amsterdam, unidos pela primeira vez na história para realizar um projeto de um artista contemporâneo. No Museu Van Gogh, pinturas famosas de Vincent serão exibidas junto com obras de Kiefer. No Stedelijk, será possível ver a apresentação inédita de todas as obras do artista alemão que pertencem à coleção da instituição exibidas juntas. O título da mostra, “Sag mir wo die Blumen sind” (Where Have All the Flowers Gone?), nomeia o novo conjunto de trabalhos de Kiefer, mas refere-se tanto a uma canção pacifista do cantor estadunidense Pete Seeger, popularizada na Alemanha em uma versão interpretada por Marlene Dietrich, como aos famosos girassois de Van Gogh.

Anselm Kiefer, curador Leontine Coelewij e diretor Rein Wolfs na abertura para imprensa de “Sag mir wo die Blumen sind” no Stedelijk Museum Amsterdam, 5 de março de 2025. Foto: Maarten Nauw, via divulgação.

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