Quantos de nós não nos pegamos de maneira inocente cantando esta canção de Gil sem saber muito bem do que se tratava ou quem era Baba Alapalá? Ou mesmo que esta música fala de morte? Nas filosofias de matriz africana a pessoa é definida por seus ancestrais, ou seja, o indivíduo, não é ele apenas, mas a soma de seus pais, avós e bisavós. Devido a esta lógica, aqueles que falecem são lembrados na manifestação do Baba Egun ( pai ancestral, segundo a cultura yoruba). Esta expressão cultural-filosófica de ancestralidade sobreviveu apenas no Brasil e oeste africano (Ghana, Togo, Benin e Nigéria) e em terras nacionais o mestre maior desta celebração (alapini) era Mestre Didi. Além de ser um dos maiores artistas de nossa época, ele era também a liderança suprema do culto aos mortos no Brasil, fundador do Ile Asipa.
Neste território meio brasileiro meio nigeriano, Gilberto Gil encontrou o Baba Alapalá, ancestral da família do Orixá Xangô e patrono do Ile Asipa. Após a passagem de Mestre Didi, tal qual aponta a música e como ocorre nas tradições yorubas, seu neto Antonio Oloxode é a atual liderança responsável por manter o culto aos ancestrais no Ile Asipa. Tal como o avô, ele desdobra sua produção numa dimensão transcendental. Dois filhos de Xangô, funções distintas. Mestre Didi, que era Assoba (sacerdote de Omulu, orixá da transformação, portanto das doenças), redimensionou os limites entre a arte e o sagrado. Antonio Oloxede, que é Osi Alagba (mestre dos rituais a Ogum: orixá das lutas, dono das ferramentas e inovações), propõe sua arte como ferramenta de transformação social e transcendental.
Na entrevista a seguir uma conversa entre visível e invisível:
Como se inicia a sua trajetória ancestral?
Nasci num táxi e quem me segurou foi uma pessoa de Ogum. Filho de Ogun. Meu tio Regis, meu pai de santo atual. E quando eu comecei a nascer ele me segurou. Por isso que eu tenho esse amor todo por Ogum. E Ogum vem Oxossi, porque Oxossi faz parte da minha família Asipá. Eu sempre faço homenagem aos três: Xango, Ogum e Oxossi.
E como você acha que Ogum se relaciona com esse momento bélico, do genocídio contra a população negra?
Ogum é um orixá de guerra. Sabe qual a influência dele? Cortar os males e as doenças, queimando o passado no fogo. Ao fazer suas ferramentas, as novas tecnologias ele usa o fogo. Ele usa o fogo para fazer o abedé é a ferramenta dele. O fogo destrói e muda tudo.
No mês de Junho se celebra a festa de Xango, são doze dias de Xango no Ile Ase Opo Afonja. Então o mês de junho faz parte do meu orixá e também do Baba Alapalá, eu sou um dos ojés do Baba Alapalá.
O que é o Baba Egun?
Baba é o culto dos nossos antepassados. Nós cultuamos nossos antepassados da África , nossos mais velhos os trouxeram de lá. Meu avô, o alapini ( sacerdote maior do culto a baba egun), Mestre Didi criou a gente nesta cultura. O baba egun é muito forte para nós do Ile Axé Asipá. Este lugar aqui onde estamos é a família do mestre Didi.
Como seu avô te inspirou?
Quando eu era criança, ele frequentava muito o Afonja. Ele era Assobá de lá (responsável pelo culto a Omolu – divindade ligada às doenças e as transformações). Então ele mandava a gente raspar as taliscas de coqueiro e dava uns agrados em troca. Com o tempo fui me interessando sem ele saber. Muitas pessoas tentaram copiar o mestre, eu não imitei o mestre. Eu aprendi com ele, fazia minhas obras e deixava guardadas. Num período ele ficou muito doente, nesse momento, resolvi ir até a casa dele levar umas obras minhas para que ele conhecesse. Ele viu e ficou muito feliz. Ele chegou a dizer assim: pensei que fosse morrer e não haveria ninguém da minha família que seguisse meu legado. Quando ele viu minhas peças ele ficou maravilhado e me pôs para restaurar as obras dele. Ele não podia mais trabalhar com as taliscas por causa da doença, então eu passei a fazer a reforma destas obras.
E daí em diante eu vou adiantar outra matéria que você vai me perguntar… (risos)
Vai roubar minha pergunta? (risos)
Você vai perguntar: qual é a diferença da minha produção para dele? A obra do mestre, ele puxa mais para uma cor mais fechada, uma proposta mais para dentro. As minhas obras são mais abertas e alegres. Eu tenho esse interesse de dar alegria às obras é um objetivo meu, então eu realmente uso mais cores. É um traço também de personalidade, ele era mais fechado, eu sou mais aberto. Ele dizia à gente: ‘a gente Oje tem que ser mais fechado’. A gente não pode dar entrevista, estou dando porque é para você, mas ele mesmo não dava entrevista. Depois que comecei a executar as reformas para ele, comecei a criar as minhas obras. São obras com as quais eu sonho. Durmo, acordo inspirado, levanto, desenho, para não esquecer e faço no outro dia. Eu sou muito nervoso, agoniado, eu pego logo para fazer logo. Aquele assentamento mesmo de Ogum e Oxossi veio na minha cabeça como deveria ser feito, a de Xangô, a mesma coisa. E tem outras que eu não posso dizer agora que tem muitas coisas… que são surpresas.
É segredo?
Segredo.
Por favor, conte mais sobre o processo criativo deste assentamento de Ogum e Oxossi…
Eu sonhei com ele (Ogum) fazendo aquela obra, não era eu era ele. Sonhei com ele fazendo a obra, acordei de noite e desenhei a obra. De manhã eu falei com Tina ( esposa de Antonio olo), vá ver na mesa o que eu desenhei. No sonho Oxóssi (orixá do conhecimento e da caça) limpa um caminho , como se estivesse caçando e vendo o que não se podia ver e Ogun indicando a direção. Essa é a obra.
Você acha que esse sonho se relaciona com este momento de pandemia?
Sim, por causa dos orixás de rua: Obaluaiê, Nana, Ogum, Exu. É como uma limpeza, uma transformação no mundo todo, um novo caminho, como no sonho.
Qual a função da sua obra neste novo caminho do mundo?
As minhas obras são obras de axé. Minha vida é o terreiro, ali naquele espaço sagrado o invisível cria as obras comigo, nos sonhos. Por exemplo: a peça de Ogum e Oxossi..Oxossi é o caçador, o dono das matas. Ogum é o dono das estradas. O que destrói qualquer coisa, aquele que quebra coisas ruins. Eu acredito que o orixá só traz coisas positivas. E eu trabalho com essas energias que eu aprendi com meu mestre, do jeito que elas existem em mim. Então essa obra é sobre enxergar novas coisas, para encontrar um novo caminho.
Como o senhor acha que devemos nos relacionar com a morte?
A morte não é ruim não, eu sou Ojé ( sacerdote do culto aos ancestrais) . Eu estou bem, aqui onde estou, mas minha função é trabalhar com a morte através do Baba Egun, porque eles são nossos ancestrais, ajudam a gente. São eles que nos livram de coisas ruins que possam encurtar nossa vida. A morte para muitas pessoas é um sossego, um repouso do sofrimento. Para muitas pessoas na pandemia, a partida ocorreu cedo. Mas a dor, na verdade, é mais para a família, os que ficam. Para os que foram, a morte foi uma transformação. A própria doença é um mistério para todos, ninguém sabe exatamente o que é ou como foi. Para a gente se manter vivo a gente precisa se guardar. Ficar em casa, seguir os protocolos. Nos guardar.
Como o senhor vê sua obra em relação ao genocídio da população negra?
As minhas obras são obras de axé. Minha vida é o terreiro, ali naquele espaço sagrado o invisível cria as obras comigo, nos sonhos. Por exemplo: a peça de Ogum e Oxossi…Oxossi é o caçador, o dono das matas. Ogum é o dono das estradas. O que destrói qualquer coisa, aquele que quebra coisas ruins. Eu acredito que o orixá só traz coisas positivas. E eu trabalho com essas energias que eu aprendi com meu mestre. Eu entrego tudo ao tempo, o tempo revela tudo.
Você está dizendo que suas obras têm função espiritual também?
Exato. Orixá e Egun são forças espirituais. E essas duas forças existem em mim, tanto os ancestrais como as forças da natureza. É com eles que eu faço minhas obras. Quando eu crio minhas obras eu coloco nelas essas forças através de amor , carinho e paz. A minha obra está aí para encontrar pessoas que acreditam na dimensão invisível do amor, do carinho e da paz. Como se algo dos orixás estivessem ali também, se expandindo pelo mundo através das obras.
Esta é a atuação das suas obras na luta global contra o genocídio da população negra?
Não se troca morte com morte, nem tiro com tiro. Foi uma coisa muito triste. O mundo está sofrendo. Que as famílias se confortem com os antepassados deles, todo mundo tem antepassados, independente de religião. Eu digo as famílias que estes jovens negros estão agora com o senhor do invisível (Olorun) e o invísivel mesmo está cuidando deles e também de nós que estamos aqui.
(ele canta uma canção para encerrar a entrevista)
”Se Awo kikun, Awo Kirun, Nse Awo Mawo Si Itula Ile Awo”
(as iniciadas no mistério não morrem, as iniciadas no mistério não desaparecem, as iniciadas no mistério vão para a casa do renascimento)