A história da cidade de Coimbra e do seu patrimônio é marcada pela convivência com as águas do Rio Mondego, que, ao longo dos séculos, teimosamente alagou as suas margens. O ritmo natural dos seus subimentos obrigou a uma permanente adaptação no modo de estar rio abaixo, rio afora, rio adentro, numa constante reposição e atualização do que aparentemente não se pode mudar. Como assentar num local sistematicamente invadido por tamanha força? Situado na margem esquerda do Mondego, o convento dedicado a Santa Clara, fundadora do ramo feminino na ordem franciscana, e custeado por Isabel de Aragão, Rainha de Portugal, no início do século XIV, sofreu constantes alteamentos do seu piso térreo até que um andar superior teve de ser construído. Mas a insistência das águas de longas beiras obrigou as Clarissas ali reclusas a abandonar o antigo convento e a encontrar refúgio no Monte da Esperança, onde se situa hoje, e desde o século XVII, o Convento de Santa Clara-a-Nova.
O encontro com o pondo perpétuo do rio acontece, de maneira reversa, no conto A Terceira Margem do Rio, de João Guimarães Rosa (1962). A decisão individual do protagonista não é contornar a natureza, mas ir solitariamente enfrentá-la para cursar o rio numa canoa feita especialmente para si, como para caber justo o remador. Essa atitude de autorreclusão a céu aberto, gesto radical de ocupação irreversível que define o território da terceira margem, provoca os elementos da família, que observam, reagem ou narram a estranheza da verdade de acordo com as suas expectativas e papéis.
Cinco frases retiradas do conto servem como eixo conceitual para possíveis desdobramentos desta bienal. Elas sugerem, de entre outros, silêncio — nosso pai nada não dizia; passagem — longe, no não-encontrável; marginalidade — passadores, moradores de beira; invenção — executava a invenção; e, por fim, militância — chega que um propósito. Estas cinco frases-tema serão interpretadas por meio de uma pluralidade de vozes: na curadoria tripartida, orientam a exposição; pelos autores, estruturam o catálogo; e servem de ponto de partida para o programa de ativação em desenvolvimento pelos alunos do Mestrado em Curadoria do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra.
Além do Convento de Santa Clara-a-Nova, a exposição A Terceira Margem espraia-se pelas ruas do centro da cidade (ocupando nomeadamente o Edifício Chiado e a Sala da Cidade), pela Universidade de Coimbra (Museu da Ciência — Laboratorio Chimico, Museu da Ciência — Galeria da Historia Natural e Colégio das Artes), e pelos espaços do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (Sede e Sereia, o último com curadoria paralela de Tomás Cunha Ferreira). Entre os 40 artistas participantes estão João Maria Gusmão e Pedro Paiva, Erika Verzutti, Belén Uriel, Luís Lázaro Matos, José Spaniol, Bruno Zhu, Ana Vaz, Meriç Algün, João Gabriel e Anna Boghiguian.
O Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra nasceu de um esforço conjunto entre o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, a Universidade de Coimbra a e a Câmara Municipal de Coimbra e tem, para a sua terceira edição, curadoria-geral de Agnaldo Farias e curadoria-adjunta de Lígia Afonso e Nuno de Brito Rocha.
A Terceira Margem
Abertura: 02/11/19
Visitação: até 29/12/19
Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra: Convento de Santa Clara-a-Nova, Calçada de Santa Isabel, Coimbra. + outros endereços