A Semana de 22, Mário de Andrade e as ideias de brasilidade

Discutimos os detalhes sobre o evento em fevereiro de 1922 e Denilson Baniwa fala sobre sua percepção, como artista indígena, da Semana de Arte Moderna

por Beta Germano
11 minuto(s)

Neste episódio contamos detalhes sobre o evento organizado em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, discutindo as primeiras ideias de brasilidade que nasceram naquele momento.  No segundo bloco, entrevistamos Denilson Baniwa sobre sua percepção da Semana de Arte Moderna como artista indígena.

Re-Antropofagia, de Denilson Baniwa, de 2018

Como comentamos no episódio passado, no ensejo da exposição de Anita Malfatti e das críticas recebidas pela artista, um grupo de artistas começou a se reunir em torno de uma ideia de futuro da arte brasileira, que viria a se consolidar nas décadas seguintes. 

Apesar de reconhecermos que o Rio de Janeiro já fosse bastante avançado e progressista na virada do século, Mário de Andrade – personagem essencial nessa história – afirmara que apenas São Paulo poderia ter importado a real modernidade européia. A ideia aqui é que mesmo a capital sendo uma cidade internacional, eram as elites paulistanas que viajavam para a Europa e absorviam suas influências sem a mediação das academias, e por isso, mesmo que ainda muito provinciana, meio caipira, São Paulo podia também ser moderna, com potência para começar a rivalizar com o Rio, moderno de nascença. “São Paulo era muito mais “moderna” porém, fruto necessário da economia do café e do industrialismo consequente.”

Sabemos que já havia um espírito moderno no trabalho de diferentes artistas e escritores ainda no século 19, mas discussões em torno de um desejo de ruptura com o academicismo e a adoção de novos valores estéticos começam a se aquecer e se acirrar no fim da década de 1910, tendo como principal ponto a Exposição de Anita Malfatti em 1917. 

Mas há outros fatos relevantes que contribuem para a realização da lendária  Semana de 22! Em 1920, o intelectual e escritor Graça Aranha publicou o romance Canaã, tornando-se um nome central para uma literatura focada em aspectos nacionalistas e regionais, tornando-se fonte de inspiração para os artistas da Semana de 22. Inclusive, parte dele certo estímulo para o evento. Depois de Canaã, ele havia publicado A Estética da Vida, em 1921, com diversos ensaios que refletem sobre o que faz o brasileiro, como se constitui esse povo, expondo suas concepções e visões de mundo de maneira muito singular.

O próprio Mário de Andrade – escritor, crítico e pesquisador do folclore brasileiro – é central na articulação de ideias de modernidade. Ele trabalhava em jornais e também escrevia prosa e poesia, além de ter também estudado música. Publicou em 1918 seu primeiro livro sob o pseudônimo de Mário Sobral, Há Uma Gota de Sangue em Cada Poema. Ele também colabora com várias publicações como crítico de música e de arte, quando começou a frequentar ateliês de artistas, principalmente do escultor Victor Brecheret. Em 1921, ano central para a articulação da Semana, começa uma série de artigos para o Jornal do Comércio intitulada “Mestres do Passado”, defendendo uma renovação na literatura, atacando o parnasianismo que dominava a cena no país.

Outro personagem essencial na articulação do evento foi Emiliano Di Cavalcanti. Di era natural do Rio de Janeiro e trabalhou como ilustrador desde muito cedo – tendo, inclusive, ilustrado um livro de Manuel Bandeira. Aos 20 anos, mudou-se para SP para estudar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e naquele mesmo fatídico ano de 1917, também realizou sua primeira mostra individual de caricaturas. É a mostra de Anita Malfatti que despertou em Di o desejo de se aprofundar nos seus estudos de pintura, dividindo-se entre SP e Rio. As primeiras obras de Di, como Mulher em Pé, fazem com que Mário de Andrade reconheça nele um talento especial para a cor. 

Em fins de 1921, Di abriu uma exposição de pinturas e desenhos em São Paulo. O já famoso escritor Graça Aranha foi visitá-lo, com a demanda de conhecer os jovens da cena artística local, conhecendo então Oswald de Andrade, Mário, Menotti del Picchia e Guilherme de Almeida, todos sedentos por renovação. Foi também a partir dos contatos dessa exposição, que Di conseguiu começar a articular o tal festival de arte que viria a ser a Semana de 22 – que, inclusive, poucos sabem, contou também com artistas do Rio, por meio da ajuda do poeta carioca Ronald de Carvalho. 

Ainda que a autoria da ideia sobre a realização do evento da Semana de Arte Moderna não seja clara – Mario, inclusive, rejeitava o crédito – parece que Di “pescou” a ideia da semana de dona Marinette Prado, uma francesa radicada no Brasil que, em conversa com o artista, lembrou da realização da Semaine de Fêtes, um evento de verão na cidade litorânea de Deauville, na temporada de festivais, com exposições, concertos, etc. Paulo Prado, marido de Dona Marinette, vinha de uma das mais ricas e influentes famílias de São Paulo, mas não atuava apenas como mecenas, era escritor e poeta, um grande inconformado com o provincianismo cultural local, e o principal apoiador da realização do evento. 

Cartaz da Semana de Arte Moderna idealizado por Di Cavalcanti
Cartaz da Semana de Arte Moderna idealizado por Di Cavalcanti

De acordo com Aracy Amaral, em livro sobre a Semana, Di falou que gostaria de fazer uma semana/festival no Brasil que fosse escandalosa, para chocar a pequena burguesia paulistana. Assim, reuniram os outros modernistas para tentar traçar um plano, com Di sendo responsável pela organização da mostra de pinturas. 

Antecedendo ao carnaval, e no contexto da celebração dos cem anos da independência do Brasil, o grupo de jovens artistas e intelectuais alugou o Teatro Municipal de São Paulo durante uma semana em fevereiro de 1922. Foi Paulo Prado, inclusive, que convenceu outros membros da elite cafeicultora e banqueira de São Paulo a bancar esse aluguel. Mais do que isso, Paulo também garantiu a presença de Graça Aranha no evento, personagem que serviu para ajudar a legitimar as reivindicações revolucionárias daquele bando de jovens desconhecidos. 

A mulher de cabelos verdes, de Anita Malfatti, de 1916
A mulher de cabelos verdes, de Anita Malfatti, de 1916

A mostra de artistas contava com nomes importantes. Entre os principais pintores que participaram estava Anita Malfatti, cujas obras foram novamente alvo de chacota e de violentos comentários do público, ainda que ela estivesse com grande destaque no saguão, exibindo doze de seus trabalhos, muitos exibidos lá em 1917, como O Homem de Sete Cores; A Mulher de Cabelo Verde; e O Homem Amarelo. Outro fato relevante é que, dentre seus trabalhos, Anita mostra uma certa preocupação com temas “nacionais”, como nas telas “Moemas” e “Baianas” – e isso é algo que vai atravessar o pensamento de muitos dos artistas presentes no festival. 

O Homem de Sete Cores, de Anita Malfatti, em 1916
O Homem de Sete Cores, de Anita Malfatti, em 1916
O Homem Amarelo, de Anita Malfatti, de 1917
O Homem Amarelo, de Anita Malfatti, de 1917

Já Di também teve seus trabalhos muito criticados pelos visitantes. De acordo com Aracy Amaral, ele representava muito bem o ambiente modernista, sendo jovem, inquieto, curioso e engajado – porém, ainda meio inseguro com sua produção, apresentou apenas dois óleos, Retrato e Ao Pé da Cruz.

Boêmios amigos, de Di Cavalcanti
Boêmios amigos, de Di Cavalcanti

John Graz, pintor suíço recém chegado ao Brasil, e casado com a artista Regina Gomide Graz, rapidamente tinha se integrado ao grupo modernista, apresentando 8 pinturas à óleo no evento, incluindo duas obras intituladas Paisagem de Espanha, criticadas pelo “desequilíbrio de linhas muito acentuado”. 

Entre os pintores de fora do círculo paulistano, destacam-se Zina Aita e Vicente do Rego Monteiro, trazendo um sopro de ar fresco para a cidade. A primeira, mineira radicada no Rio, conheceu Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho, que a convenceram a participar da Semana com sete trabalhos, dos quais conhecemos apenas o pastel chamado “Trabalhadores”, que tem uma textura mais pontilhista na sua execução. Por outro lado, Vicente do Rego Monteiro estava fora do Brasil na ocasião (assim como Tarsila), mas conseguiu participar com dez obras apresentadas por intermédio e ajuda também de Ronald de Carvalho, que emprestou parte de sua coleção para a exposição. Entre as obras trazidas para São Paulo, Vicente exibe alguns retratos, Cabeça verde, Baile no Assyrio, Cubismo e Lenda Brasileira. Inclusive, por essa última obra percebemos também o interesse e preocupação do artista com algo que nomeamos de temática nacional, ou brasileira. 

Cabeça de Cristo, de Victor Brecheret
Cabeça de Cristo, de Victor Brecheret

Os escultores também chamaram muita atenção, principalmente Wilhelm Haarberg  e Victor Brecheret. Brecheret, inclusive, também estava em Paris durante a Semana, mas era mesmo um dos queridinhos de outros modernistas como Oswald e Menotti del Picchia. Mas nem isso ajudaria o artista a escapar do olhar negativo do público, sendo também muito criticado pela distorção das figuras. Apresentando 12 peças que havia deixado no Brasil até 1921, incluindo Cabeça de Cristo, O Torso, Pietá, e Vitória, entre outras. Ele era também era aclamado por seu nacionalismo, por carregar algo visceralmente nosso – tropical e indígena, como disse Menotti em um de seus artigos. Vale dizer que Aracy Amaral discorda totalmente de Menotti, reconhecendo em Brecheret os traços de um artista de raízes europeias, com formação e mentalidade europeia.

Vitória, de Victor Brecheret
Vitória, de Victor Brecheret

Em geral, não havia uma linha entre as obras, que variam entre os principais estilos europeus – impressionismo, pontilhismo (pós-impressionismo), Expressionismo. Mas mesmo com um nível irregular, o conjunto chocou a elite paulistana provinciana e sabemos que o objetivo deles era mesmo chocar! O mais importante para eles era fincar essa posição de reação, de renovação, de avanço contra o academicismo e, como eles mesmos falavam, contra o passadismo. 

Para além da mostra que contava com cerca de 100 obras, a Semana também contava com uma programação de eventos, com leituras, declamações, concertos e conferências.  A exposição que era aberta diariamente no saguão do teatro, e em três noites separadas, 13, 15 e 17 de fevereiro, foram realizadas três sessões musicais e literárias.

Quem inaugurou e abriu os trabalhos no primeiro dia foi Graça Aranha, com uma palestra intitulada A emoção estética da Arte Moderna. O primeiro dia do festival correu com certa tranquilidade, apesar da má recepção do público às obras expostas. A conferência de Graça Aranha também não foi lá muito bem recebida – a sensação geral era que ele não sabia muito bem do que estava falando nem como defender a arte moderna. Ou melhor, que ele não entendia muito do que estava falando, mas pelo menos acreditava na tendência. 

No dia 15, segundo dia do evento, Mário realizou uma conferência, que mais tarde viraria livro, publicado como ensaio intitulado A Escrava que Não é Isaura, em 1925. Nessa fala, o escritor tenta articular pensamentos e ideias estéticas que defendem a modernidade no Brasil, sugerindo um olhar que mire nas raízes da cultura popular brasileira – uma perspectiva que vai atravessar as pesquisas de Mário para sempre, já que sabemos que ele vai, como diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, bancar uma missão de pesquisa ao norte e nordeste do Brasil para gravar discos sobre o folclore popular na música. Foram gravados 115 discos, acompanhados também da edição de livros sobre os temas recorrentes nessa pesquisa, tipo Bumba-meu-boi, Xangô, Catimbó, etc.

Mário começou a proferir sua conferência já num clima muito pesado. Anita conta que ele não tinha voz e projeção para fisgar o público e que sua fala acabava sendo suplantada pelas vaias. Daí Mário resolver ler sua palestra na escadaria do saguão do Teatro, considerada uma fala fundamental para as ideias modernas na literatura no país, algo que Mário já vinha desenvolvendo desde a publicação do famoso “Prefácio interessantíssimo” do livro “Paulicéia Desvairada” escrito em 1921, mas apenas publicado em 22.

Aí eu acho que tem um comentário importante pra gente fazer. Muitos modernistas exaltavam uma espécie de futurismo na arte moderna, mas para Mário, esse não era o foco. Ele disse que “Escrever arte moderna não significa jamais representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto”. Outra aparente contradição em Mário é que, à medida que ele defendia a modernidade, também tentava escapar dos europeísmos. Há uma frase famosa dele na qual ele afirma “Sou um tupi tangendo um alaúde”, referindo-se ao milenar instrumento musical de tradição egípcia, grega, romana, europeia, mas definitivamente não brasileira. 

Mas a verdadeira atração do dia 15 de fevereiro foi uma palestra de Menotti del Picchia sobre estética, fala que foi muito vaiada e, ao mesmo tempo, aplaudida pela plateia. Menotti apresentava novos escritores, novos valores literários. Foi também nesse dia que o episódio em torno de Manuel Bandeira aconteceu. O carioca Ronald de Carvalho declamou Os Sapos, poema de Bandeira que criticava aberta e diretamente os parnasianos, aqueles que seguiam regras métricas, rítmicas e de rima na poesia. Bandeira dizia que aquilo não era literatura. Enquanto Ronald lia o texto, o público fazia barulhos de animais e gritava ofensas cheias de desdém, o que fez com que a noite acabasse em total tumulto.

Por fim, o último dia do evento, a sexta-feira, contou com a apresentação de Villa-Lobos e outros músicos. O dia começou tranquilo,  relativamente vazio, e o público estava mais comportado do que no dia 15. Mas foi só Villa Lobos subir ao palco calçando chinelo em um pé que já começou a ser vaiado, com a plateia entendendo o gesto como uma afronta futurista. Apesar de justificada a gafe de estilo – o compositor tinha um calo inflamado, e por isso entrou com sapatos diferentes – o público paulistano foi completamente impiedoso. 

Como a gente viu, longe de ser totalmente futurista e radical, a Semana de 22 acabou sendo mesmo uma primeira abertura que, causadora de escândalo, deixou grande parte dos artistas mais confusos do que confiantes, como se percebe na fala de Di Cavalcanti “A confusão era geral”. Se existe um elo entre seus diversos artistas, ele reside mesmo na negação de todo e qualquer “passadismo”: a recusa à literatura e à arte acadêmica, importadas, com os traços de uma civilização cada vez mais superada, no espaço e no tempo. 

Em 1942, Mário escreveu sobre toda essa experiência em uma série de artigos para o jornal Estado de São Paulo, comemorando os 20 anos do evento. E ali, com certa distância, fez um balanço no qual avaliava os pontos fortes e fracos da empreitada. “Mas como tive coragem para dizer versos ante uma assuada tão singular, que eu não escutava do palco o que Paulo Prado me gritava da primeira fila das poltronas?… Como pude fazer uma hórrida conferência na escadaria do teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?… (…) se agüentei o tranco foi porque estava delirando.”

Nesses artigos, Mário também reconhece parcialmente sua contribuição para a modernização da literatura, reforçando as referências às lendas populares e o abrasileiramento linguístico em sua escrita. Retomando as raízes do movimento, Mário relembra todo o regionalismo já evocado pela Revista do Brasil, a arquitetura e até o urbanismo neocolonial nascidos aqui, reconhece o valor do nacionalismo de Almeida Júnior, por exemplo, e da escrita de Machado de Assis, e a centralidade da mostra de Anita Malfatti de 1917, dizendo que sua realização criou aqui uma religião – isso só para citar alguns grandes nomes sobre os quais já falamos nos nossos episódios anteriores. 

Mário reconhece, por outro lado, que o espírito do movimento, os estilos artísticos, vinham importados diretamente da Europa, enquanto havia em paralelo o desenvolvimento da consciência americana e nacional, os progressos internos da técnica e da educação. Ao fim e ao cabo, o movimento moderno no Brasil teve um papel contraditório e muitas vezes precário. A semana de arte moderna de 1922 essencialmente preparou terreno para inovações posteriores, renovando um estado de espírito revolucionário que já vinha sendo cultivado desde muito antes. Nos nossos próximos episódios, vamos começar a falar dos desdobramentos da Semana e os efeitos que ela teve – ou deixou de ter – na arte brasileira.

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