
Entre o fim de agosto e o início de setembro, São Paulo vive um curto intervalo de dias em que a cidade parece concentrar anos de agenda artística. De 27 a 31 de agosto, a SP-Arte Rotas transforma o galpão da ARCA, na Vila Leopoldina, em uma cartografia de projetos curados que vão do Maranhão ao Rio Grande do Sul, passando também por galerias da Argentina e do Peru. Pouco depois, em 6 de setembro, a 36ª Bienal abre no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, deslocando o eixo para um território mais expandido, onde a lógica do mercado dá lugar a proposições curatoriais de fôlego institucional.
Se por muito tempo esses dois campos – o da feira e o da Bienal – orbitavam em calendários distantes, a sobreposição recente cria um fluxo raro. Para quem vem de fora, significa poder atravessar, em menos de uma semana, o corredor que vai do stand ao pavilhão, de uma obra em negociação a um enunciado crítico.
Nesse mesmo intervalo, museus, galerias e instituições da cidade aproveitam o momento para inaugurar exposições, lançar projetos e reposicionar programas. Parte dessa movimentação se dá de forma estratégica, com mostras e aberturas que dialogam com a presença de curadores e colecionadores estrangeiros; outra parte segue a lógica de intensificar a oferta cultural, transformando a cidade em um percurso contínuo de visitas e descobertas.
Na Rotas, a presença de Rodrigo Moura como diretor artístico pelo segundo ano consecutivo reforça o interesse em formatar a feira como um espaço que não se limita à função comercial. O setor Mirante, com obras de grande escala, aproxima nomes históricos como Beatriz Milhazes, Cildo Meireles e Mestre Didi de artistas cuja produção se enraíza em contextos específicos, como Manauara Clandestina, com sua obra incorporada a uma política transexual, afrodescendente e indígena. Já o setor Transe, curado por Lucas Albuquerque, funciona como um campo de suspensão, reunindo trabalhos de Caio Carpinelli, Emilia Estrada, Fernão Cruz, Marina Woisky e Marlan Cotrim que não se fixam em um meio específico e, muitas vezes, solicitam um corpo disponível para o estranhamento. São obras que habitam e preservam suas zonas de ambiguidade.
“Aqui, o público descobre novos nomes e reencontra artistas consagrados em fases de expansão internacional. Conhece galerias emergentes, projetos fora dos grandes eixos, movimentos em gestação. Cada presença na feira é uma possibilidade de rota – um desvio, um reencontro, uma travessia”, comenta Fernanda Feitosa, diretora executiva da SP-Arte.

Nessa edição, a feira também passa a se colocar como um espaço de troca entre práticas artísticas latino-americanas. Ao incluir galerias e artistas internacionais como a galeria Isla Flotante, de Buenos Aires, e o projeto Xapiri Ground, da Amazônia Peruana, a Rotas amplia seu alcance geográfico e promove encontros entre histórias, contextos e imaginários distintos. Essa movimentação desloca o olhar concentrado nos circuitos tradicionais e aproxima São Paulo de uma rede de produção que, embora diversa, compartilha questões estruturais como colonialidade, disputas territoriais e modos singulares de pensar o corpo e a paisagem.
Do outro lado da cidade, a Bienal parte de um verso de Conceição Evaristo – “Nem todo viandante anda estradas” – para tratar de deslocamentos e encontros. A curadoria de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung e equipe constrói um panorama que é menos sobre mapear territórios e mais sobre tensionar o que se entende por pertencimento. Entre os mais de cem artistas e coletivos, dezenove mantêm vínculos com galerias associadas à ABACT (Associação Brasileira de Arte Contemporânea), mostrando que o trânsito entre mercado e instituição é mais intrincado do que a separação de funções sugere.
Essa aproximação não é apenas casual. Por trás dela, há o trabalho articulado do Projeto Latitude, em parceria com a ABACT e a ApexBrasil, que organiza as chamadas Art Immersion Trips. Nessas programações, curadores, diretores e colecionadores estrangeiros circulam por feiras, galerias e ateliês, mas também visitam mostras institucionais. Em 2025, nomes como Hammer Museum, Museo del Barrio e Royal Academy of Arts confirmaram presença – não para uma agenda genérica, mas para encontros calibrados ao que está acontecendo na cidade nesse recorte específico de tempo.
“São Paulo vive um momento único, onde a convergência da SP-Arte Rotas e da Bienal de São Paulo nos permite apresentar a força do nosso mercado e a riqueza da nossa produção artística a um público internacional altamente qualificado”, afirma Ricardo Sardenberg, presidente da ABACT. “Essa sinergia, aliada ao reconhecimento global da arte brasileira, cria um ambiente ideal para fortalecer as nossas galerias e impulsionar a internacionalização dos nossos artistas.”
O efeito é claro: um artista visto na ARCA pode ser reencontrado dias depois na Bienal, agora reposicionado em um discurso que não depende da lógica de venda. A relação se inverte também quando uma obra experienciada no pavilhão pode despertar interesse de aquisição em quem a reconhece, dias antes ou depois, no espaço de uma galeria.
Ao contrário de outras praças internacionais, onde feira e bienal convivem há décadas, São Paulo está testando essa engrenagem agora. E talvez seja justamente nesse caráter experimental, nesse território ainda sem protocolo definido, que reside o potencial de criar uma dinâmica própria, capaz de expandir o alcance da arte brasileira no circuito global sem perder de vista as condições e atritos locais.