A Bienal começou antes de começar?

Como a 36ª Bienal de São Paulo redesenha o próprio sentido de ser uma exposição — e o que a inteligência artificial tem a ver com isso

por Diretor
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Por muito tempo, bienais foram pensadas como grandes eventos ancorados num território específico, reunindo artistas e obras de diferentes partes do mundo em um mesmo espaço físico. No caso de São Paulo, a Bienal passou a acontecer no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, a partir de 1957, consolidando ali sua sede definitiva. Desde então, o edifício modernista projetado por Oscar Niemeyer abriga uma das mostras de arte mais importantes do mundo.

Mas a 36ª edição da Bienal de São Paulo parece querer desmontar essa lógica — e não é só um discurso. Antes mesmo de abrir suas portas oficialmente em 06 de setembro, a mostra já acontece, já se move, já se constrói em outros lugares. Marrocos, Japão, Zanzibar e Guadalupe estão entre as cidades que receberam as chamadas Invocações, com encontros, oficinas, performances e processos colaborativos que além de anunciarem a Bienal, integram sua estrutura e marcam seu modo de existir. Fragmentado, em trânsito, em escuta com diferentes contextos.

Otobong Nkanga, “Unearthed – Sunlight”, 2021. Via Lisson Gallery

Essa movimentação não é exatamente nova. A Documenta 11, em 2002, sob curadoria de Okwui Enwezor, já havia proposto um modelo descentralizado, com plataformas realizadas em diversas cidades ao redor do mundo, muito além de Kassel. A Documenta 15 (2022), sob curadoria do coletivo ruangrupa, levou essa lógica ainda mais longe, centrando a exposição em práticas coletivas, redes de afeto e modos comunitários de fazer.

No Brasil, as Bienais de São Paulo também vêm transformando suas formas de circulação. A 34ª edição (2021) se desdobrou em uma extensa itinerância após o encerramento no Ibirapuera. A 35ª (2023) deu continuidade a esse gesto, com mostras em cidades de diferentes regiões do país. A 36ª, por sua vez, incorpora esse deslocamento desde o início. Mas não como uma expansão posterior, e sim como base metodológica da própria curadoria.

Essa edição parte de uma concepção desenvolvida por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung junto aos cocuradores Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Thiago de Paula Souza, à cocuradora at large Keyna Eleison e à consultora de comunicação e estratégia Henriette Gallus. O título — “Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática” — faz referência a um poema de Conceição Evaristo e propõe a ideia de humanidade como algo a ser exercido, e não como atributo estático. O centro da proposta curatorial não está no objeto, mas nos fluxos — de pessoas, de escuta, de conhecimento.

Da esquerda para a direita: Keyna Eleison, Anna Roberta Goetz, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, Alya Sebti, Thiago de Paula Souza e Henriette Gallus, equipe conceitual da 36ª Bienal de São Paulo. Foto: Fundação Bienal de São Paulo

O grupo curatorial tomou como referência os deslocamentos migratórios das aves para pensar a construção da mostra. O voo do gavião-de-cauda-vermelha pelas Américas, os percursos do trinta-réis-ártico por zonas polares, ou as rotas do pássaro combatente entre Ásia Central e Norte da África são tomados como metáforas para os modos como também os humanos cruzam fronteiras, carregando memórias, línguas, experiências.

Em texto divulgado pela Bienal, Ndikung afirma que esse modelo ajudou a evitar o recorte por Estados-nação. A navegação das aves, sua adaptação a diferentes geografias e sua leitura de urgências ambientais serviram de guia para o mapeamento simbólico da mostra. Os 120 artistas que participam da 36ª vêm de regiões atravessadas por rios, mares, desertos e montanhas. Corpos d’água como o Amazonas, o Hudson, o Tâmisa ou o Essequibo marcam as trajetórias desses artistas, e também orientam os temas das Invocações, pensadas em torno de oceanos, estuários, lagos e suas margens compartilhadas.

Para Ndikung, as águas funcionam como uma rede viva — mesmo diante do esforço humano para controlá-las, elas continuam a se conectar. Assim também os pássaros seguem migrando sem passaportes. “Os humanos poderiam ser melhores se aprendessem com os outros seres”, afirma.

Se antes o deslocamento era algo que acontecia no transporte das obras e dos artistas até São Paulo, agora ele faz parte da própria estrutura da exposição. Essa perspectiva se traduziu no programa das Invocações, que percorreu quatro continentes com eventos pensados a partir dos contextos locais:

  • Marraquexe (Marrocos): Chamado “Souffles: On Deep Listening and Active Reception”, esse encontro em novembro de 2024 teve como foco a escuta como prática política e espiritual, em diálogo com tradições Gnawa e sufis. Reuniu artistas e participantes para experiências sonoras baseadas em ritmos de transe e leituras poéticas de autores como Abdelatif Laâbi, ativando modos de atenção, presença e comunhão por meio da escuta.
  • Guadalupe (Caribe): A segunda Invocation, intitulada “Bigidi mè pa tonbé! (Totter, but never fall!)”, teve como foco a inteligência do corpo diante do desequilíbrio. Com performances de dança baseadas nos sete ritmos do Gwoka, o encontro destacou a adaptabilidade física como forma de criação, gesto político e expressão dos saberes afro-caribenhos.
  • Zanzibar (Tanzânia): Em fevereiro de 2025, o foco foi a música Taarab e sua dimensão coletiva. Com “Mawali–Taqsim: Improvisation as a Space and Technology of Humanity”, a curadoria apontou a música como instrumento de encontro, aprendizado e convivência, numa reflexão poética e política sobre estuários — espaços de confluência de culturas, línguas e temporalidades.
  • Tóquio (Japão): Realizada em abril de 2025, “Bukimi no Tani: The Uncanny Valley – The Affectivity of the Humanoid” investigou a relação entre humanos e máquinas. Com performances, instalações e sons, o encontro questionou a “valley uncanny” e propôs abordagens alternativas à IA – entendida como uma inteligência estendida, afetiva e não exclusivamente tecnológica

“Este é um convite para imaginar um mundo em que possamos enfatizar nossas humanidades, em um momento em que a própria ideia de humanidade está literalmente falhando conosco”, disse Ndikung em entrevista à New City Brasil ao comentar sua visão curatorial para esta edição.

Josèfa Ntjam, “Dislocations”, 2022, filme em HD, 17 min, escrito e dirigido por Josèfa Ntjam, coprodução de Aquatic Invasion Production e Le Palais de Tokyo, 2022

A IA como parte da conversa

O encontro em Tóquio, realizado em parceria com instituições locais e última etapa do programa Invocations, propôs uma discussão pouco comum no circuito institucional. Como lidar com a inteligência artificial sem reproduzir a lógica do Vale do Silício — centrada em controle, vigilância, extração de dados e produção incessante?

Em vez de fetichizar a IA como avanço técnico ou temê-la como ameaça, o debate se organizou em torno de formas alternativas de pensar a inteligência. A curadoria deslocou o foco para cosmologias que compreendem o pensamento, a transmissão e a escuta de maneira coletiva, relacional e não hierárquica — como nas tradições indígenas, afro-diaspóricas e não ocidentais. A floresta é um sistema de dados. O tambor é uma tecnologia de comunicação. A oralidade é uma blockchain ancestral.

Nesse enquadramento, a IA deixa de ser novidade. Ela se inscreve numa longa história de modos de saber que passam pela oralidade, pelos ritmos, pelos ciclos naturais e pelas redes vivas entre humanos, territórios, plantas, espíritos e elementos. O objetivo não era “incluir” essas cosmologias num campo tecnológico dominante, mas justamente reorientar a imaginação sobre o que pode ser considerado tecnologia, e quem tem legitimidade para produzi-la.

No fim, o que fica?

Mais interessada em processos do que em conclusões, a 36ª Bienal entende a humanidade como uma prática relacional, coletiva e inacabada — que se constrói na relação com outros seres e saberes ancestrais. A visita ao Ibirapuera é só mais uma camada desse movimento, que segue em expansão.

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