Viajando de Paris a Nova York, a apresentação na Hauser & Wirth reúne mais de 20 pinturas criadas por Francis Picabia entre 1945 — ano em que retornou à capital francesa vindo do sul do país — e 1952, penúltimo ano de sua vida. Representativas do espírito inquieto que atravessa toda a sua produção, as obras em exibição destacam a abordagem singular de Picabia à abstração, sua tendência iconoclasta de repintar trabalhos anteriores e sua atenção contínua à textura da superfície e a fontes de inspiração pouco convencionais.
Nos primeiros 30 anos de sua carreira, Picabia percorreu rapidamente diferentes estilos e técnicas, experimentando com uma sucessão de movimentos artísticos que incluiu o impressionismo, o fauvismo, o dadaísmo e o cubismo. Em 1925, afastou-se de Paris e se estabeleceu em Mougins, na Côte d’Azur, onde produziu a série Transparências — composições enigmáticas que sobrepõem motivos da arte antiga e de pinturas renascentistas —, além de obras mais realistas, como paisagens. Nesse período, também criou seus controversos nus naturalistas: retratos lascivos de figuras femininas inspirados em erotismo de massa.
Em 1945, diante de dificuldades financeiras e em busca de um novo rumo, Picabia retorna a Paris. Em entrevista, afirmou estar procurando um “terceiro caminho” entre o surrealismo e a abstração — as duas forças dominantes da arte europeia do pós-guerra. Ainda que rejeitasse a ênfase surrealista na figuração elaborada, almejava seguir, por meio da abstração, um diálogo com o inconsciente e com as sensibilidades mais íntimas do artista. Apesar de sempre resistir a ser rotulado por movimentos específicos, Picabia associou-se voluntariamente à crescente corrente do art informel, abrindo seu ateliê “quase todo domingo” para artistas mais jovens como Henri Goetz, Christine Boumeester, Raoul Ubac, Jean-Michel Atlan e Georges Mathieu.
Ao fundir referências distintas e tradições visuais diversas, Picabia criou linguagens visuais e simbólicas absolutamente novas. Historiadores da arte identificam diretamente a origem de motivos presentes em obras como Le U (1950), Villejuif [I] (1951) e La terre est ronde (A Terra é Redonda) (1951) no catálogo de arte românica da Catalunha publicado pelo museu municipal de Barcelona em 1926, que o artista consultava com frequência. A composição de La terre est ronde, por exemplo, adapta formas centrais de uma ilustração de um manuscrito iluminado do século X que retrata um anjo do apocalipse bíblico, reproduzido no catálogo catalão. Na versão de Picabia, círculos multicoloridos flutuam no ar e se espalham pelo solo ao redor da figura central, aproximando essa obra mais representacional das suas chamadas pinturas de “pontos”.
Picabia também recorria com frequência à literatura para nomear suas obras, inspirando-se especialmente em Nietzsche. Dois exemplos dessa prática estão presentes na exposição: Cherchez d’abord votre Orphée ! (Primeiro, procure seu Orfeu!) (1948) e Bonheur de l’aveuglement (A alegria da cegueira) (c. 1946–1947), ambos títulos extraídos de passagens do livro A Gaia Ciência (1882).