Coleção de Niomar Moniz Sodré, fundadora do MAM Rio, vai a leilão em Paris

Montado pela jornalista e opositora da ditadura, acervo pouco conhecido reúne nomes como Picasso, Duchamp, Dubuffet, Soto e Maria Martins

por Diretor
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Pablo Picasso, “Femme nue à la guitare”, 1909. © Succession Picasso, 2025

Em abril, a Sotheby’s de Paris leiloa uma das coleções mais densas – em história, convicção e visão de mundo – que já passaram por sua sede. Intitulada “La Liberté pour dogme”, são 70 obras que pertenceram a Niomar Moniz Sodré Bittencourt: jornalista, ativista, fundadora do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e uma das vozes mais firmes contra o regime militar no Brasil.

Entre os nomes do acervo estão Pablo Picasso, Alberto Giacometti, Marcel Duchamp, Jean Dubuffet, Maria Martins, Piero Manzoni, Almir Mavignier, Jesús Rafael Soto e Antonio Seguí. Uma escultura de Giacometti, Femme Debout, pode alcançar até R$ 22 milhões. Já a pintura Femme Nue à la Guitare, de Picasso, deve ser arrematada por algo em torno de R$ 11 milhões.

Mas o que está em jogo nesse leilão vai além dos números e dos grandes nomes. É a história de uma mulher que marcou a cultura e a política do país com lucidez e coragem.

Nascida em Salvador, em 1916, Niomar cresceu num ambiente em que arte e cultura eram parte da vida cotidiana. Aos 15 anos, já dirigia a seção “Questões Femininas” no Correio da Manhã, jornal do qual se tornaria diretora anos depois, usando sua voz para defender os direitos das mulheres em um país e em um tempo em que ser ouvida era, por si só, um ato de resistência.

Niomar passeia pelo Parque Gráfico do Correio da Manhã. Imagem: Reprodução

Com o tempo, além de se consolidar como jornalista combativa, Niomar foi central na articulação de um novo cenário para a arte moderna no Brasil. Casada com Paulo Bittencourt, diretor do Correio da Manhã, passou a compartilhar com ele o desejo de transformar o Rio de Janeiro numa capital da modernidade artística. Mas foi o encontro com a escultora Maria Martins – figura influente na cena surrealista internacional – que mudou definitivamente o curso da vida de Niomar.

Martins a levou a Nova York nos anos 1940, onde Niomar foi atravessada pela efervescência cultural do pós-guerra. Frequentou o apartamento de Peggy Guggenheim, conheceu Duchamp, Yves Tanguy, André Breton e, acompanhada de Nelson Rockefeller, teve um momento decisivo durante uma visita ao MoMA: a concepção do que viria a ser o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Sem se deixar abater pela resistência política e cultural, e com recursos limitados, ela fundou o MAM Rio em 1955, a primeira instituição do Brasil dedicada exclusivamente à arte moderna e contemporânea. Foi uma iniciativa ousada, sustentada pela convicção de que o Brasil precisava se afirmar culturalmente no cenário internacional. Mas ela não foi apenas idealizadora: articulou apoios, viajou, comprou obras, formou acervo.

MAM Rio. Via Sotheby’s

Foi também responsável por transformar o Correio da Manhã em um dos únicos jornais brasileiros a enfrentar abertamente o golpe de 1964. Quando muitos silenciaram, ela escreveu um editorial com o título “Não ao terrorismo”, denunciando um atentado à sede do jornal e recusando qualquer recuo. Acabou presa em 1969 e, pouco depois, partiu para o exílio em Paris. Levou uma mala pronta, caso precisasse sair de um dia para o outro – e nunca mais voltou a ocupar o lugar que teve no Brasil.

A coleção que agora vai a leilão foi construída nesse tempo. Na capital francesa, Niomar voltou a circular pelos ateliês e galerias. Não comprava por status, tampouco para montar um acervo “de mercado”. Suas escolhas vinham do que a provocava: obras que atravessavam zonas de instabilidade, que não entregavam respostas fáceis. Muitas estavam fora do radar à época. Há, nesse conjunto, um diálogo claro entre os artistas europeus com quem conviveu e os latino-americanos que, como ela, se moviam entre margens – buscando outras formas de existir no mundo. Não é um acervo feito para comprovar gosto refinado. É feito de aproximações radicais, de apostas pessoais, de relações construídas ao longo de uma vida que nunca separou arte e posição política.

É raro que uma coleção particular seja tão coerente com a história pessoal de quem a formou. Ainda mais raro que ela se mantenha discreta por tanto tempo, guardada fora do circuito, sem exposições, sem circulação pública. Agora, ao ir a leilão, ela reaparece como um retrato indireto de Niomar: sua aposta no pensamento moderno, sua recusa ao autoritarismo e sua crença de que a arte não deve nada à ordem estabelecida.

Alberto Giacometti, “Femme debout”, c. 1952. Via Sotheby’s

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