Lucia Laguna não planejava ser pintora. Seu primeiro contato com a Escola de Artes Visuais do Parque Lage foi quase um acaso, um momento de curiosidade que mudou o rumo de sua vida. “Santo Deus, eu não sei nada disso. Como vou começar?”, ela pensou ao folhear os livros dos cursos oferecidos. Ainda assim, se matriculou e nunca mais parou. Antes disso, já havia passado décadas como professora de literatura e vivido em um ambiente onde o fazer manual e o pensamento andavam juntos – seja na fabricação de brinquedos para crianças, no bordado ou na escrita. Aos poucos, a pintura se tornou o lugar onde todas essas experiências se cruzaram.
Por mais de 40 anos, seu ateliê no bairro de São Francisco Xavier foi o ponto de partida de sua produção. A vista da janela organizava e desorganizava suas composições: casas que se acumulam, árvores que escapam do concreto, a paisagem do morro da Mangueira e das vias expressas da cidade. Além de ponto de vista, a janela é também um recurso compositivo. O geógrafo Milton Santos dizia que “o mundo é o que se vê de onde se está”, e essa frase ecoa na prática da artista. O que está à sua frente se transforma em pintura, mas não de forma literal. As imagens que surgem em suas telas são atravessadas por recortes, sobreposições e apagamentos, um processo que lembra o próprio crescimento desordenado das cidades. Recentemente, essa paisagem mudou: Laguna trocou de ateliê, um deslocamento que impactou diretamente sua prática. Sua pintura passou a absorver novas referências e experimentar novas possibilidades cromáticas e formais.
Laguna não se limita a reproduzir o que vê. Ela desmonta e remonta a paisagem, deixando que o acaso tenha um papel importante. Em entrevista à artista Laís Amaral, explicou seu método: “Ficava uma certa confusão e, nessa confusão, eu ia me achar”, disse sobre seu processo, que inclui girar a tela, cobrir partes com fitas adesivas, apagar e reconstruir. Esse processo lembra a ideia da psicóloga Ellen Winner, que estuda a cognição na arte e sugere que a criatividade muitas vezes vem da disposição em lidar com o imprevisível. É um pensamento que também se aplica à forma como Laguna incorpora seus assistentes no trabalho: eles iniciam as telas e ela entra depois, ajustando e respondendo ao que já foi feito. A pintura deixa de ser um gesto individual e passa a ser um diálogo.
A escolha da pintura como linguagem veio naturalmente, mas sem a necessidade de um rótulo fixo. “Acho problemático definir um estilo, sabe? Se você tem um estilo definido e se mantém dedicado àquilo, pode querer mudar, mas fica preso”, afirmou na mesma entrevista. Sua pintura está sempre em movimento, escapando de classificações rígidas. Ela recusa a ideia de que sua obra seja abstrata, pois tudo nela nasce da observação direta. Se há quebras na narrativa, são feitas para surpreender o olhar, e não para afastá-lo da realidade. Com o novo ateliê, novas perspectivas se abriram, alterando também a maneira como compõe suas telas.
Ao longo dos anos, sua relação com a cor também mudou. No início, evitava tons muito intensos, hesitava diante do vermelho. Com o tempo, foi se permitindo mais ousadia, mais risco. Em trabalhos recentes, que atualmente integram sua exposição individual “A propósito de duas janelas”, na Fortes D’Aloia & Gabriel, faixas monocromáticas em tons neon de verde, amarelo, laranja, vermelho e rosa começaram a aparecer, tensionando os elementos figurativos e criando apagamentos luminosos. Talvez essa liberdade tenha raízes em sua infância, na lembrança de um quadro de um flamboyant na sala de casa, com uma moldura dourada que a fascinava. A memória de olhar para aquela imagem repetidamente ficou dentro dela e, de algum modo, reaparece hoje em sua paleta.
Intitulada “A propósito de duas janelas” e acompanhada de um ensaio escrito pelo crítico e curador Diego Matos, a mostra marca o retorno da artista fluminense a cidade paulistana após quatro anos. A janela, elemento recorrente em sua prática, segue como estrutura e desvio: organiza a composição em retângulos e quadrados, mas também desestabiliza escalas e introduz novos cenários visuais.
“À vista disso, percebe-se a obra de Laguna nessa fração de tempo em que se dá a mudança, em que as coisas se sobrepõem, transmutam e ganham outras vidas. Neste momento, é a paisagem em que o verde – aquilo a que nos acostumamos chamar de natural – teima em conservar exuberância. Entretanto, a pintura em sua composição não deixa de conter os mais variados signos urbanos, aqueles que identificamos, por exemplo, ao nos sentarmos na janela de um ônibus durante uma grande jornada com paradas fortuitas e freadas que nos fazem contemplar um entorno imediato, capturando elementos dos mais ordinários e prosaicos. E isto se repete, mesmo em uma condição de escala urbana mais limitada quando de sua mirada, de sua casa para o exterior, alcançando a esquina onde muito parece acontecer.” – Diego Matos
Para Laguna, ensinar e pintar são práticas que se misturam. Quando era professora, usava imagens para estimular seus alunos a pensar além do que estava nos livros didáticos. O mesmo acontece em suas telas: elas não entregam respostas prontas, mas oferecem caminhos para que cada um construa sua própria leitura. Seu método de trabalho, sua generosidade com a imagem e com os outros artistas que fazem parte de sua produção, sua relação com o espaço e a cidade – tudo isso se reflete na forma como suas obras se expandem, cheias de camadas e de respiros, prontas para acolher o olhar de quem se aproxima.
Serviço:
“A propósito de duas janelas” de Lucia Laguna
Local: Fortes D’Aloia & Gabriel
Período expositivo: 8 de fevereiro até 22 de março de 2025
Entrada: Gratuita