Era uma noite fria de setembro quando o casal de artistas, Ana Mendieta e Carl Andre, se sentou na sala do apartamento do homem, no Greenwich Village, para assistir a um filme. Eles, que tinham um relacionamento conturbado, marcado por duras brigas, escolheram uma película que, curiosamente, espelhava a vida dos dois, no entanto como se os papéis estivessem invertidos.
Andre, na época, era um artista minimalista com uma carreira já solidificada, e de muito renome no mundo das artes. Ana Mendieta, que apesar de possuir um trabalho impactante e carregado de discussões sociopolíticas profundas, enfrentava as barreiras que o mercado impunha para uma criadora mulher e latina, atuando sob uma configuração norte-americana e embranquecida. O filme remetia ao oposto dessa realidade.
Mendieta se irritou com o que assistia, optando por dormir mais cedo. Queria que o marido fosse junto. Ele não foi. Minutos depois, Andre se levantou do sofá para checar o estado da companheira e não a encontrou. Voltou à sala para assistir aos momentos finais do filme. Retornou a busca pela esposa e, como não obteve resultados, acionou o famigerado 911 dos Estados Unidos.
Esse é o relato que o artista contou quando a polícia chegou à sua casa para investigar a queda de Ana Mendieta pela janela do apartamento. Em uma primeira versão, fruto da gravação do telefonema entre o artista e o atendimento emergencial estadunidense, ele diz:
“O que aconteceu foi que… a minha mulher é artista e eu sou artista e tivemos uma briga sobre eu ser mais, é… exposto ao público do que ela, e ela foi pro quarto e eu fui atrás e ela caiu da janela.”
Analisando a versão revelada à polícia e aquela que foi contada para o 911, percebe-se que o discurso sofreu algumas alterações. Outras descrições alternativas feitas por Carl Andre também surgiram, se adaptando ao tempo e circunstâncias nas quais se inscreviam. No entanto, um ponto em comum entre todas as falas – que intercalavam entre “ela tentou fechar a janela e caiu de lá”, ou “ela pulou da janela” -, o artista sempre espontaneamente admitia “de alguma forma ser responsável por sua morte”. Seja causando um profundo incômodo por discrepâncias profissionais, seja por não dormir na hora que Ana Mendieta gostaria.
Fato é que, meio à mudanças nas retóricas e processos judiciais que acabaram por absolver o minimalista do processo pelo assassinato de Mendieta, o impacto da queda do corpo da artista sob a calçada do Greenwich Village, em 1985, foi tão estrondoso que hoje em dia conseguimos ouvir os ecos de sua misteriosa morte nos quatro cantos do mundo. Em “Naked By The Window: The Fatal Marriage of Carl Andre and Ana Mendieta”, livro escrito pelo norte-americano Robert Katz, há um trecho que conta sobre como o universo artístico se dividiu a partir do falecimento da artista: “O mundo da arte se dividiria em campos distorcidos e inimigos: o campo de Carl, o campo de Ana e um pequeno campo que tentaria lançar uma praga sobre todos os campos, não ganhando nada com seus esforços além do desprezo universal. Mas essa fragmentação estava apenas em seus estágios iniciais…”
A parcela que protestava (e protesta) contra a violência que Ana Mendieta teria sofrido, se ateve às contradições entre os relatos oferecidos às autoridades, bem como as marcas frescas de arranhões no rosto do criativo, para acusar Carl Andre de ter empurrado a artista de 1,50m do 34º andar. Da ocorrência do caso, até os dias que se seguiram, protestos, performances, artigos, pesquisas, e diversos trabalhos de arte irromperam quase imediatamente com a sonoridade de muitas incertezas que pairavam sobre o evento.
Nessa eclosão de denúncias e estudos sobre a vida e morte de Ana Mendieta, surgiram um livro, um podcast e um filme. Agora uma série produzida pela Amazon MSM Studios em parceria com a Plan B Entertainment, estreará no canal de streaming Prime Video. A obra ainda não tem previsão de lançamento.
Inspirada justamente pelo romance “Naked By The Window: The Fatal Marriage of Carl Andre and Ana Mendieta”, de 1990, a produção analisa o impacto da obra da artista enquanto performer e escultora no efervescente cenário nova iorquino, também destacando seu sórdido casamento com Carl Andre.
America Ferrera – estrela reconhecida por obras cinematográficas como “Barbie” e “Betty, a feia” – é a responsável por dar vida à artista cubana, que imigrou na condição de refugiada para os Estados Unidos sob o contexto revolucionário de seu país natal. A atriz de raízes hondurenhas também está por trás da produção executiva da série, que explora a relação de Ana Mendieta com seu fazer artístico, cuja grande temática sempre foi a luta feminista, e a relação entre o corpo feminino agente político e as paisagens naturais do planeta terra.
O seriado também conta com Charise Castro Smith, cubano-americana por trás de longas como a animação da Disney “Encanto”, que ocupará o lugar de roteirista na produção sobre Mendieta.