Uma exposição que caberia, na prática, dentro do bolso, mas que tem o tamanho mundo. Refletindo sobre ela, fica difícil não lembrar do verso “Tenho em mim todos os sonhos do mundo”, escrito por Fernando Pessoa no poema Tabacaria, de 1928. Falamos aqui de Reset:, de Betty Leirner, que acaba de abrir na Galeria Superfície, em São Paulo.
Em momento de isolamento social, enquanto a flexibilização ainda não abarca galerias e museus, a primeira coisa a se inferir é que é mais uma exposição virtual. E não é. A mostra está montada no espaço físico da galeria e, apesar de inacessível ao público, sua força não está limitada ao esse contato, mas está principalmente na mensagem que ela ecoa. Isso porque os dois fragmentos de embalagens em cartão, nos quais estão as palavras world (mundo) e a expressão rest of world (resto de mundo) nos contemplar sobre tudo aquilo que o mundo significa para nós nesse momento, todos os sonhos, pensamentos, devaneios que esse momento de quarentena nos suscita. Todos os sonhos do mundo, sobre o mundo, no mundo.
A artista guardava essa obra em sua coleção pessoal desde os anos 2000 e esperava o momento certo de poder mostrá-la. É o que explica Gustavo Nóbrega, diretor e fundador da galeria. Ele conta que Betty, que é representada pela Superfície, mostrou esses dois trabalhos para ele assim que se conheceram e que ele ficou encantado com as peças. Entusiasta de ideias experimentais e ousadas, a proposta da artista de expor esses trabalhos na conjuntura atual o agradou bastante.
“À espera de um momento certo para aparecer, as obras (W) e (R.O.W) saem do arquivo da artista, hoje, num momento preciso, como se necessitasse dar um grito poético, político e conceitual”, afirma Gustavo. Expor as duas obras juntas se mostra uma ação bem sucedida, sendo que nesse contexto da pandemia do Covid-19 mostrou o como o ‘nós’ e o ‘resto do mundo’ estamos mais próximos do que podemos imaginar, nos colocando em um lugar só, o ‘mundo’.
Ao mesmo tempo, o isolamento nos faz viver em um ‘mundo’ particular, no qual não temos contato físico com outras pessoas, outros mundos, o ‘resto do mundo’. Essa angústia do não poder acessar o “resto do mundo”, do desejo de encontrar a outros indivíduos e outros lugares é também uma questão da obra. No texto O presente da palavra, escrito pelo historiador de arte Adon Peres para a exposição, esse anseio está desenhado na relação galerista-artista. Nas palavras de Peres: “Por um lado, um artista que cria uma obra cuja existência pode ser compartilhada; por outro lado, um galerista cujo engajamento é fazer com que esta obra seja reconhecida. No contexto atual no entanto, a possibilidade de que este reencontro possa acontecer torna-se fortemente comprometida”.
Esse texto crítico é também um acontecimento em Reset:, pois explica, ainda, como a tradução de “rest of world” pode também significar o “repouso”, a “pausa” do mundo enquanto dura esta quarentena. Peres também aponta como a obra representa “Um Mundo dividido, que permanece em repouso à espera de transmutação”.
Essas transformações que imaginamos que o planeta enquanto sociedade possa vir a ter já podem ser sentidas nas convulsões sociais e políticas que temos observado nas últimas semanas, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, e até mesmo no Brasil. O “mundo” e o “resto” dele, portanto, não estão assim tão distantes.
Confira a versão PDF do catálogo da exposição no site da galeria, clicando aqui. Reset: permanece até 8 de julho na Galeria Superfície.