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34ª Bienal de São Paulo tem discussões sobre as relações e sobre a opacidade

Mais de 1100 obras de 91 artistas de países de todos os continentes ocupam o Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque do Ibirapuera, com visitação até 5 de dezembro

por Jamyle Rkain
10 minuto(s)
Sala com obras de Daiara Tukano. Ao centro, Espelho da Vida, 2020 © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

A 34ª Bienal de São Paulo abre tem abertura de sua exposição principal para o público neste sábado, 4 de setembro, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque do Ibirapuera, com visitação até 5 de dezembro. Adiada por causa da pandemia, a mostra reúne mais de 1100 obras de 91 artistas de todos os continentes. A curadoria desta Bienal ficou por conta de Jacopo Crivelli Visconti (curador geral), Paulo Miyada (curador-adjunto), e Carla Zaccagnini, Francesco Stocchi e Ruth Estévez (curadores convidados).

O título, verso emprestado de poema presente em Madrugada Camponesa (1965) do poeta amazonense Thiago de Mello, traz uma mensagem de resistência e luta diante dos tempos complicados que o Brasil vive: Faz escuro mas eu canto. É uma declaração que se coloca como uma afirmação de insatisfação diante do atual momento, especialmente no que diz respeito ao cenário político com o governo Bolsonaro, que ao longo dos últimos anos instaurou crises em diversos setores, inclusive na cultura.

Fachada do Pavilhão Ciccillo Matarazzo com obra de Paulo Naza

Na coletiva de imprensa que aconteceu no Auditório Jorge Wilheim, no edifício da Bienal, o presidente da Fundação Bienal de São Paulo, José Olympio da Veiga Pereira, falou aos jornalistas sobre a felicidade de estar realizando o evento e mantendo o projeto original com algumas alterações. Isso porque a extensão no espaço que previa exposições em parceria com uma rede de várias instituições culturais da cidade sofreu algumas modificações, algumas delas sendo canceladas e outras mantidas com adiamento. “A ideia da rede está presente, temos hoje cerca de 20 instituições com exposições relacionadas à Bienal”, comentou e citou a individual de Regina Silveira, no Museu de Arte Contemporânea da USP, e a de Antonio Dias, no Instituto de Arte Contemporânea. Olympio também frisou a importância da colaboração entre instituições diferentes, com visões diferentes, se reunindo em torno de um único projeto. O curador-geral, Jacopo Crivelli Visconti, chamou atenção para o fato de que essa questão da rede de instituições responde a uma vontade de dialogar com os muitos públicos que visitam a Bienal, que no geral é o público que frequenta as mostras realizadas por essas instituições no decorrer dos anos.

Outro ponto levantado pelo presidente foi a preocupação da organização em relação aos protocolos de segurança contra a Covid-19. Com assessoria do Hospital 9 de Julho, foi constatado que não há necessidade de agendamento prévio para visitação, tendo em vista que a extensão do pavilhão permite uma capacidade grande de pessoas em cada piso com bastante distanciamento. Apesar disso, uma orientação de limitação de público será seguida. A Bienal exige, porém, a apresentação de um comprovante de vacinação conta a Covid-19 para acessar o prédio. O visitante deverá ter de forma impressa (com o cartão de vacinação) ou virtual (via app ConecteSUS ou Poupatempo Digital) o atestado de que tomou pelo menos a primeira dose do imunizante. Segue a obrigatoriedade básica do uso de máscara e a orientação de distanciamento. Ao longo do pavilhão, diversos totens com álcool em gel foram instalados.

Nessa primeira apresentação a imprensa participou também Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, um dos maiores patrocinadores da Bienal de SP. Sua fala teve certo teor político na defesa do setor cultural, destacando a importância da retomada das atividades do segmento, e também se debruçou sobre os efeitos da pandemia na educação, na cultura e na saúde mental. O avanço da ciência, da saúde e da vacina também esteve na fala de Saron.

Vista interna a partir do terceiro andar. © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Em um segundo momento, subiram ao palco da coletiva todos os cinco curadores membros da equipe curatorial da 34ª Bienal de São Paulo. Em sua fala introdutória, Jacopo Crivelli Visconti chamou a atenção para duas das exposições da rede de instituições parceiras que se relacionam com os enunciados que estão presentes na mostra geral para falar sobre como a bienal se expandiu no espaço. No Itaú Cultural, abre no dia 18 de setembro a exposição coletiva Ocupação Paulo Freire, enquanto no Instituto Moreira Salles uma mostra sobre Carolina Maria de Jesus ocorre a partir de 25 de setembro.

Vale lembrar que os enunciados aparecem na proposta da Bienal desde a coletiva Vento, realizada no segundo semestre do ano passado. Esses enunciados são elementos que não são obras de arte, mas suas histórias são marcantes e acabam sugerindo leituras das obras que estão próximas a elas. O enunciado Cadernos de Carolina Maria de Jesus, por exemplo, estimula uma observação acerca das obras de Deana Lawson, Frida Orupabo e Paulo Nazareth; enquanto o enunciado Círculos (a partir) de Paulo Freire se vincula a obra de Clara Ianni, mas tem também uma particularidade: toda semana, até o final da exposição, será realizada uma conversa com o público sobre os enunciados que ali presentes. Essas conversas, chamadas Círculos de Arte, terão inspiração em princípios propostos por Paulo Freire, sendo eles de autonomia, horizontalidade e dialogicidade.

Já em relação à expansão no tempo, Jacopo destacou o fato de que a 34ª Bienal acabou se transformando em uma mostra processual. Já desde o início, a bienal não foi construída a partir de um tema, mas sim a partir de uma metodologia. “É uma exposição de processo, muito mais do que de chegada. É uma exposição que queria mostrar o quanto dela era fruto de um ensaio constante, de uma interação constante do que acontecia ao redor e não apenas dentro da exposição”, ele explica.

O curador trouxe de volta a coletiva Vento para falar sobre essa questão processual. Isso porque, para a equipe, a mostra foi como uma espécie de ensaio. “Naquela ideia que a gente colocou desde o começo de uma Bienal que vai se construindo e ensaiando, o ensaio da Vento foi essencial também para chegarmos à exposição de vemos hoje, porque a gente sentiu com muito mais clareza como é possível deixar, por exemplo, trabalhos audiovisuais se invadindo um o outro, entrando em fricção, em relação, em contato”, comenta. Jacopo retoma as ideias de fricção, relação, contato, opacidade e dificuldade de entender que vieram de uma leitura aprofundada das referências trazidas do filósofo de poeta martinicano Édouard Glissant para a construção desse processo.

© Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo
Conjunto de obras da artista paraense Uýra © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

A poética da relação e a opacidade

Partindo de uma visão acerca de como as coisas entram em relação umas com as outras e mutuamente se modificam, os escritos de Glissant sobre a poética das relações mostrou à equipe curatorial da Bienal que não necessariamente a “transformação não quer dizer abrir mão de sua própria identidade, quer dizer entender que a transformação é parte da identidade de cada um”, nas palavras do curador-geral. Curador convidado, Francesco
Stocchi trouxe em sua fala como a própria composição da equipe curatorial, cada um com suas particularidades, explicitou essa ideia de Glissant quando as diferenças entre eles se encontraram: “A construção da Bienal se tornou uma experiência tautológica onde o sujeito e o objeto podem se encontrar e se fundir em um só”.

Neste sentido do encontro entre as diferenças, entra a opacidade, aquilo que faz com que não enxerguemos muito bem o outro. O curador-adjunto, Paulo Miyada, explicou que não é necessário eliminar toda essa opacidade do diferente “para reconhecer a sua humanidade, para reconhecer o seu direito pleno à existência”. Para ele, é quando se compreende que não vai conseguir entender tudo o que está ao redor do outro que o indivíduo se vê tendo que trabalhar com uma espécie de tradução. Ele exemplifica dizendo que é quando se tem a percepção de que não se vai poder decifrar tudo de uma obra de arte que se vê suas possibilidades e o quanto ela se transforma de acordo com os seus contextos e suas relações. “Então a opacidade é quase que um pacto ético que permite uma relação entre diferentes que não se dê na base na base da dominação de saber ou prática entre povos, culturas e agentes”, argumenta Miyada.

Carla Zaccagnini, curadora convidada, reflete também acerca das relações e de como uma obra pode causar outras percepções em outros encontros com o público. Quando voltamos a encontrar um pensamento ou uma ideia, são criadas camadas de memórias com novos olhares. A Bienal propõe esse exercício ao público ao trazer em outros lugares e em relação a outras obras os trabalhos que estiveram na exposição Vento e também na individual de Ximena Garrido-Lecca. A proposta também vem de forma até mais expansiva, explica Zaccagnini, com as mostras na rede de instituições parceiras, fazendo inclusive com que isso se aprofunde e se desdobre com uma visão maior do corpo de obras de alguns artistas. Ela usou como exemplo os trabalhos de Noa Eshkol que estão na Bienal mas também na individual da artista na Casa do Povo ou Jaider Esbell e outros artistas que também têm obras na coletiva Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea, no Museu de Arte Moderna (MAM-SP), na qual Esbell é também o curador responsável.

Fotografias de Mauro Restiffe © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Das relações na exposição

Obras que fazem menção a tensões políticas têm presença marcante na exposição. No primeiro andar, fotografias de Mauro Restiffe das posses de Lula, em 2003, e de Bolsonaro, em 2018, explicitam bastante essa rusga. Elas tomam toda uma parede paralela a obras de Regina Silveira da série Dilatáveis, de 1971, que mostra figuras como políticos e militares em sombras desproporcionais a seu tamanho real. Aqui, o enunciado é o Sino de Ouro Preto, que reza a lenda que foi o único sino que subversivamente tocou quando Tiradentes, inimigo da Coroa, foi enforcado.

Pouco antes, no térreo, está exposto o Meteorito Santa Luzia, peça que sobreviveu ao incêndio que destruiu o Museu Nacional no início de setembro de 2018, episódio que denota o descaso com a preservação e o desenvolvimento das instituições culturais e de pesquisa brasileiras. Esse objeto é trazido também como um enunciado. Ali também está uma obra da artista colombiana Gala Porras-Kim: a palma de uma mão impressa sobre papel intitulada Proposal for Luzia é um trabalho comissionado pela Bienal e parte da pesquisa que a artista fez com o fóssil de Luzia, o fóssil humano mais antigo da América, que também estava no museu e foi encontrado entre os escombros.

O meteorito Santa Luzia e a instalação Boca do Inferno, de Carmela Gross © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

No segundo pavimento, uma parede repleta de obras do artista angolano Paulo Kapela, morto em 2020 em decorrência de complicações da Covid-19, reflete justapõe o catolicismo, à filosofia banto e ao rastafarianismo, sendo colocadas em contato. Em paralelo a essa parede está a instalação Deposição (2020), de Daniel de Paula, que emerge discussões “balizadas pelas distintas visões políticas, sociais, artísticas e filosóficas que o objeto pode simbolizar”.

Também neste andar está uma sala bastante chamativa, na qual obras do brasileiro Antonio Dias estão colocadas junto a trabalhos da artista norueguesa Hanni Kamaly. Assim, as esculturas de Kamaly que são monumentos silenciosos a pessoas que foram vítimas de violência estatal conversam com os monocromos negros de Dias que falam sobre a praça do terror ou o dia como prisioneiro.

A sala que mais atrai e emociona no terceiro andar coloca juntas obras das artistas Lygia Pape e de Daiara Tukano, que também tem um espaço dedicado a suas pinturas e uma escultura em plumária em seda e espelho intitulada Kahtiri Eõrõ – Espelho da Vida, de 2020. Amazoninos de Pape, que falam sobre a fauna nas mitologias ameríndias, dialogam com o conjunto de pinturas suspensas de Daiara, que apresentam pássaros sagrados, Dabucuri no Céu (2021).

Deposição (2020), de Daniel de Paula © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

A maior presença indígena em uma Bienal

Na boca do povo está o fato de que essa é “a Bienal dos indígenas”, tendo em vista que há o maior número de artistas de origem ou ascendência indígena da História da Bienal. São, ao todo, nove artistas oriundos de povos do Brasil e também de outros países. São eles a própria Daiara, Jaider Esbell, Sueli Maxakali, Gustavo Caboco, Uyra, Abel Rodriguez, Jaune Quick-to-see Smith, Pia Arke, Sebastián Calfuqueo Aliste. 

Esbell tem obras apresentadas em dois locais no último pavimento, sendo um deles com as obras da série A guerra dos Kanaimés (2020) que esteve em Vento, e uma parede estonteante no segundo andar. Gustavo Caboco traz para a Bienal a vivacidade da memória Wapichana com a obra Kanau’kyba, que foi realizada junto com sua mãe, Lucilene Wapichana, e seus primos Roseane Cadete, Wanderson Wapichana e Emanuel Wapichana. Essa criação colaborativa está também na instalação Kumxop koxuk yõg [Os espíritos das minhas filhas], de Sueli Maxakali. O conjunto de objetos, máscaras e vestidos que remetem ao universo mítico das mulheres-espírito Yãmĩyhex foi desenvolvido junto a mulheres e meninas que, em sua comunidade, cuidam de cada um desses Yãmĩy.

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