Universo queer ganha destaque na Bienal de Veneza 

Artistas que falam clandestinidade e repressão, mas também sobre solidão, intimidade e dificuldade de aceitar a própria sexualidade 

Ahmed Umar
Ahmed Umar

“Me sentir pertencente é uma das coisas mais maravilhosas que essa Bienal pode me trazer”, revela a brasileira Manauara Clandestina em entrevista sobre sua participação na 60ª Bienal de Veneza. “Essa conquista ainda mexe muito comigo. Normalmente, quando eu via reportagens sobre travestis e sobre essa população, da qual faço parte, eram sempre matérias policiais e que marginalizavam os nossos corpos, ou, ainda, que contavam nossas histórias por nós. (…) Agora, consigo perceber e visualizar o meu trabalho nesse lugar, consigo pertencer a esse lugar”, afirma a artista ao BEM VIVER.

Definitivamente o clima de pertencimento e diversidade tomou Veneza, em festa, na semana de abertura desta Bienal. Sob o título “Estrangeiros por toda parte”, curada por Adriano Pedrosa, a mostra apresenta 331 artistas (o dobro do usual) que são, em sua maioria, do Sul Global e trazem, em seus trabalhos, a ideia de ser estrangeiro. Mas não é só nos fluxos humanos que Adriano está interessado, ele associa a figura do “estrangeiro” ao “estranho” ou ao “outsider”, destacando o trabalho de sujeitos que estão, de diferentes formas e níveis, à margem da sociedade ou do próprio mundo da arte. Entre nomes de artistas autodidatas e indígenas, há um destaque potente para trabalhos que discutem o universo queer, levando para Veneza corpos se movem dentro de diferentes sexualidades e gêneros, muitas vezes perseguidos ou violados. 

Fala-se muito sobre clandestinidade, repressão, violência, exclusão e discriminação racial, mas também sobre vulnerabilidade, solidão, anonimato, carinho, intimidade e dificuldade de aceitar a própria sexualidade. 

Há um movimento mais focado em discutir ordenações heteronormativas de intimidade, desejo, cuidado, reprodução e convívio em sociedade, destacando a  a normatividade global da violência patriarcal e a multiplicidade de maneiras pelas quais os indivíduos femininos, queer, não-binários e trans sobrevivem – cultivando condições para que possam prosperar.

E não é de hoje , vale  notar, que Pedrosa chama atenção para esse assunto. Quando idealizou a Bienal de Istambul, em 2012, o curador já falava sobre histórias subalternas ou marginais, criando diferentes núcleos. Dentro de “Untitled (Ross)” – fez uma referência aos trabalhos feitos por Félix González-Torres em homenagem a seu parceiro Ross Laycock. 

Abaixo, uma seleção de obras que falam sobre diferentes questionamentos que atravessam corpos queer. 

Disobedience Archive (2015), de Marco Scotini
Disobedience Archive (2015-), de Marco Scotini

1. Disobedience Archive (2005-), de Marco Scotini

Dos videoteipes históricos de Alberto Grifi aos filmes de Harun Farocki; das performances do American Critical Art Ensemble às do coletivo russo Chto Delat; e, das investigações de Hito Steyerl às de Eyal Sivan – a pequena exposição montada dentro de uma das salas do Arsenale, organizada numa estrutura circular,  é composta por dados históricos e uma série de vídeos que ligam a migração, a política pós-colonial e da diáspora e os movimentos LGBTQ+. 

A ideia do projeto, que começou em 2005 e segue em construção, é ser um “guia”  por quatro décadas de desobediência social em diferentes geografias do planeta. Entre as obras sob a perspectiva queer, destacadas na linha do tempo, está Corpo Fechado, do colombiano Carlos Alejandro Motta;  Desnudo bajando la escalera, do chileno Pedro Lemebel;  Difficult Love, da sul-africana Zanele Muholi; Fight Back, Fight AIDS: 15 Years Of ACT UP, do norteamericano James Wentzy; e, The Birth of Urana Remix, da brasileira Jota Mombaça, entre outros. 

Migranta (2021), de Manauara Clandestina
Migranta (2021), de Manauara Clandestina

2. Building (2020) e Migranta (2021), de Manauara Clandestina 

Nascida em Manaus, filha de um casal de pastores missionários, ainda pequena seguiu em missões, para o interior do Amazonas com sua família. Foi dentro dos templos religiosos que começou a  desenvolver atividades de canto, dança e teatro. De acordo com a artista, apesar da estrutura opressora para pessoas LGBTs, a igreja foi um espaço fértil.

Nos anos seguintes,  muda de Manaus para São Paulo e começa a atuar como performer travesti e adota o sobrenome “Clandestina” :  “Na minha transição, já não me apresentava mais com o meu nome morto e o pessoal. Já em São Paulo, referia-se a mim como ‘A bicha de Manaus’, ‘a manauara’. Na época, eu me dividia entre minhas performances na noite e os trabalhos em restaurantes, como garçonete. Certa vez, em um desses restaurantes, um colega botou ‘Clandestino’, do Manu Chao, para tocar e mexeu muito comigo. Lembro que lagrimei enquanto atendia uma mesa e que gastei todos os meus dados de Internet escutando a música no YouTube”, revela Manauara para o site acritica.  No dia seguinte, voltando ao trabalho, a artista se deparou com outro momento simbólico. “Estava no trem quando um grupo de instrumentistas entrou cantando músicas latinas, e a primeira que eles performaram foi ‘Clandestino’. Para mim, foi como um chamado. Ali, nasceu a Manauara Clandestina”, finaliza.

Building é uma homenagem ao pai que narra, no filme,  sua vida de missionário. A obra costura essa história com a própria existência de Manauara como uma travesti em trânsito migratório pelo Brasil e além. Já Migranta, codirigido por Luiz Felipe Lucas, é um híbrido de documentário e um fashion film que apresenta um encontro de artistas de origem latina em território europeu, ativando tecnologias milenares e sabedorias para o fortalecimento e a autodeterminação de corpos dissidentes. 

Personal Accounts (2024), de Gabrielle Goliath
Personal Accounts (2024), de Gabrielle Goliath

3.Personal Accounts (2024), de Gabrielle Goliath 

A sul-africana Gabrielle Goliath apresenta um dos trabalhos mais impactantes e bem resolvidos desta Bienal de Veneza. Na video-instalação Personal Accounts , mulheres e colaboradores LGBTQIA+ partilham os seus relatos pessoais de sobrevivência e reparação,  revisitando, muitas vezes, experiências traumáticas de danos físicos, sexuais, emocionais e/ou materiais. Mas estes não são apenas relatos de violência. A ideia é traçar e celebrar as formas criativas, muitas vezes fugidias, pelas quais os sobreviventes afirmam a vida e a possibilidade dentro e apesar das condições de negação. 

Com o consentimento prévio dos seus colaboradores, são retidas as palavras de cada relato. O que resta é um fluxo sonoro paralinguístico de momentos intermediários: respirações, engolidas, suspiros, gritos, zumbidos e até risadas – induzindo o lado, o próximo, o adjacente e o além do que é dito, não dito, ou se dito, não ouvido. 

A ideia é fazer um comentário sobre as pré-condições de “legibilidade” e “credibilidade” que tão regularmente minam os testemunhos (e, portanto, as experiências) dos sobreviventes. Os relatos pessoais excedem, desta forma, a dicotomia voz/sem voz da representação política.

In Falling Reversely (2022), de Isaac Chong Wai
In Falling Reversely (2022), de Isaac Chong Wai

4. In Falling Reversely (2022), de Isaac Chong Wai

Tomando como ponto de partida um ataque feito a Chong Wai junto a um andaime, a instalação In Falling Reversely tem um caráter escultórico que remete à construção civil. Anexada à sua estrutura está uma série de vídeos que mostram o artista e um grupo de dançarinos reagindo ao ato de um corpo cair diante de uma comunidade. Como você responde a esta queda? Seria possível prevenir ou pelo menos tentar amortecer a queda para diminuir a dor física? 

A ideia do artista é investigar relações e percepções de poder, violência e fragilidade do corpo individual e coletivo, examinando vulnerabilidade e a brutalidade inerentes aos sistemas sociais e aos traumas históricos.

The Royal House of Allure (2019), de Sabelo Mlangeni 
The Royal House of Allure (2019), de Sabelo Mlangeni 

5. Country Girls, Black Men in Dress  e The Royal House of Allure (2019), de Sabelo Mlangeni 

Sabelo Mlangeni atenção do universo queer por meio da beleza, do carinho, da vulnerabilidade e do mundano em lugares inesperados.  Sempre recusando centralizar a violência, todos os três trabalhos destacam indivíduos queer em estados de repouso, descanso, celebração ou folia. 

The Royal House of Allure é o nome de um esconderijo LGBTQI+ em Lagos, Nigéria. Mlangeni conviveu com os seus residentes, fazendo imagens de momentos comemorativos, bem como de cenários comuns de descansando. Country Girls e Black Men in Dress retratam os aspectos elegantes, desafiadores e sentimentais da vida queer em lugares muitas vezes considerados ameaçadores na África do Sul.

being alone (2023), de Dean Sameshima 
being alone (2023), de Dean Sameshima 

6. being alone (2023), de Dean Sameshima 

Entre a  melancólica psicossocial e a nostalgia dos espaços, sempre atento aos gestos queer, Sameshima visitou cinemas adultos em Berlim, em 2022, para fotografar secretamente figuras solitárias. O artista  incorpora, assim, uma linguagem de desejo e prazer de um tempo que já existiu e que parece ressurgir.

Sameshima acaba revelando nuances do ato contínuo de ato de olhar. “Ao olharem para as telas, os espectadores olham com eles para um horizonte de (im)possibilidades”, ressalta Xavier Robles Armas no texto do catálogo.

Seja nas páginas amarelas, nas livrarias ou nos teatros públicos, ele lembra-nos que tais espaços de lazer e prazer podem fazer-nos sentir sozinhos e juntos, ao mesmo tempo que nos tornam anónimos.

El Negro (1979), de Miguel Ángel Rojas
El Negro (1979), de Miguel Ángel Rojas

7. El Negro (1979), de Miguel Ángel Rojas

Um dos artistas colombianos mais renomados da cena contemporânea, Miguel Ángel Rojas discutetemas relacionados à sexualidade,  cultura marginal e violência. Ressalta, ainda,  problemas envolvidos no consumo e produção de drogas na Colômbia, com foco particular na exploração e violação do corpo masculino.

As  imagens borradas, em preto e branco, são emolduradas por um círculo: partes do corpo contra uma parede de azulejos ao fundo. Elas foram conduzidas através de um buraco na porta do banheiro do Teatro Mogador, um cinema no centro da cidade de Bogotá onde aconteciam encontros entre homens íntimos e clandestinos.

As circunstâncias da situação proposta impediram Rojas de capturar todo o corpo, resultando em retratos anônimos que colocam o espectador na posição de um voyeur.  Vale observar, ainda, como o seu tratamento cuidadoso da luz e da sombra enfatiza a relação ambivalente entre sigilo e exposição.

O título da série aponta para a ascendência africana do sujeito e evidencia o interesse de Rojas em expor espectadores de diferentes esferas sociais. 

Salman Toor
Salman Toor

8.Salman Toor

Pense numa cena de Toulouse-Lautrec: retire as bailarinas ruivas e adicione marginalizados florescem, pelos cantos do salão, em segurança e conforto – eles flertam, se acariciam e dançam. Em outros momento, no entanto, são ameaçados e violentados.  

As  pinturas do paquistanês Salman Toor retratam espaços de festa repletos de uma multiplicidade de autorretratos alegóricos, desvendando os seus desejos, crenças e medos. Nestes momentos de intimidade, os personagens são, no entanto, ameaçados pela repressão, exclusão e discriminação racial. Misteriosas, sedutoras, íntimas e cruas, suas obras questionam os espectadores sobre as contradições e complexidade da experiência queer.  

Toor faz parte de um grupo afiliado de pintores LGBTQ chamados de New Queer Intimists, que conta, ainda com Louis Fratino, que também marca presença nesta Bienal de Veneza. 

Sewn (1999), de Xiyadie 
Sewn (1999), de Xiyadie 

9. Sewn (1999), de Xiyadie 

Pai, agricultor, migrante, artista e gay, Xiyadiecria recortes de diferentes papéis e nuances de intimamente desde a década de 1980. 

Embora as obras em  papel de Xiyadie desde a primeira década do século 21 apresentem cenas de amor queer situadas que ele descobriu ao chegar a Pequim em 2005, os seus primeiros trabalhos são ambientados principalmente em espaços interiores. 

Em Sewn, série presente na mostra, o artista descreve sua dificuldade em aceitar sua sexualidade enquanto está preso em um casamento heterossexual. Em uma das cenas mais impressionantes, ele aparece escondido em um pequeno e opressor interior moldurado por uma porta e teto tradicionais chineses, Xiyadie olha para uma foto de seu primeiro namorado, um atendente de trem chamado Minghui. Em outra cena, ele costura seu pênis com uma grande agulha e linha feita de sêmen e sangue. 

Significativamente, a agulha que Xiyadie usa para se coser também perfura o telhado do edifício, sugerindo progresso no sentido de se libertar da tradição e da pressão familiar.

Dor e desamparo são sugeridos pela lâmina afiada perfurando sua perna, enquanto uma grande cobra deslizando dentro dele representa seu desejo irreprimível.

Kin, de Charmaine Poh
Kin (2021), de Charmaine Poh

10.  Kin (2021), de Charmaine Poh

Charmaine Poh investiga histórias centradas em experiências feministas e queer asiáticas, abordando questões de normas de gênero, destacando as dissonâncias vividas pelas pessoas queer, cujo desejo de viver e prosperar passa pela idealização da sociedade de famílias nucleares heterossexuais.

No filme Kin, acompanhamos histórias de casais de lésbicas que enfrentam dificuldades sociais e culturais de criar os seus próprios filhos em Singapura: as jovens queer refletem sobre noções de lar e família escolhida, onde o acesso à habitação pública depende de definições heterossexuais de casamento.

Em What’s softest in the world rushes and runs over what’s hardest in the world , Poh examina as lutas dos pais queer na criação dos filhos quando a sua família não tem legitimidade legal aos olhos do Estado. Entrelaçando cartas pessoais de pais queer com práticas inter-geracionais de cuidado, o filme visualiza a vida doméstica queer – simultaneamente mundana, fantástica e complexa – como um local de potencial para formas alternativas de comunidade. O parentesco queer torna-se, assim, um horizonte aberto de possibilidades relacionais que aponta para além das ordenações heteronormativas de intimidade, desejo, cuidado e reprodução.

Vale lembrar que em 2022, o Parlamento de Singapura revogou uma lei da era colonial que criminalizava o sexo entre homens, ao mesmo tempo que consolidou a definição de casamento heterosexual, anulando esforços para estabelecer direitos conjugais iguais para as pessoas LGBTQIA+.

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