Como artistas contemporâneos respondem ao racismo ambiental?

Conheça 7 produções que abordam a intersecção entre crise climática e o racismo, temas cruciais para entender os desafios enfrentados pela humanidade

The NEST Collective, Return to Sender, 2022 © Foto: Nils Klinger. Cortesia da Documenta 15

A emergência climática não afeta todas as comunidades da mesma forma; revelando claras desigualdades históricas e estruturais. O conceito de racismo ambiental, termo que descreve a distribuição desproporcional de impactos ambientais negativos sobre comunidades étnico-racializadas, é uma manifestação direta desse desequilíbrio. Neste contexto, artistas contemporâneos têm se dedicado cada vez mais a abordar essas questões em suas obras, buscando conscientizar o público sobre os impactos desses problemas.

A discussão sobre racismo ambiental é ampla e profundamente analisada por estudiosos no Brasil. Entretanto, no campo das artes visuais, ainda se observa uma carência de artistas que abordem essa temática em suas produções. Este fato ressalta a necessidade de uma maior conscientização e inclusão dessas questões no discurso artístico brasileiro, a fim de promover uma reflexão crítica e abrangente sobre os impactos ambientais e as desigualdades sociais associadas.

Apesar dessa lacuna no cenário artístico brasileiro, há um movimento crescente em outras partes do mundo nas últimas décadas, especialmente entre artistas afro-americanos e sul-africanos. Por meio de instalações, pinturas, fotografias e performances, esses artistas narram histórias e experiências frequentemente negligenciadas pela mídia tradicional e pelas instituições dominantes. Eles utilizam suas produções artísticas como uma ferramenta para destacar a convergência entre a degradação ambiental e as injustiças sociais, evidenciando como certos grupos são mais afetados pelos efeitos negativos das mudanças climáticas e da destruição do meio ambiente.

Xadalu Tupã Jekupé, Invasão Colonial: Meu Corpo Nosso Território, 2019. Vista da instalação da mostra “Território em transe” na Galeria Marilia Razuk

Xadalu Tupã Jekupé | “Invasão Colonial: Meu Corpo Nosso Território”, 2019

Xadalu Tupã Jekupé (Alegrete, RS, 1985), artista indígena Guarani Mbyá com raízes no pampa gaúcho, aborda em suas obras a realidade do racismo ambiental  – caracterizado por injustiças sociais e ambientais que afetam desproporcionalmente etnias e populações vulneráveis, resultando em impactos significativos na saúde e qualidade de vida dessas comunidades.

Nesta instalação de tecido, Xadalu apresenta fotografias de indígenas Guarani Mbyá, com coletes à prova de balas digitalmente inseridos, retratando a resistência dessa comunidade que vive em condições precárias às margens do rio Guaíba, isolada por cercas e por homens fortemente armados. Por meio dessa obra, o artista expõe as violências físicas e psicológicas enfrentadas por essas pessoas, que encaram constantes ataques e ameaças em seu dia a dia.

Allison Janae Hamilton, The peo-ple cried mer-cy in the storm, 2018

Allison Janae Hamilton | “The peo-ple cried mer-cy in the storm”, 2018

Allison Janae Hamilton, nascida em 1984, é uma artista americana cuja obra “The peo-ple cried mer-cy in the storm” se destaca por sua mensagem sobre mudanças climáticas e desigualdade social – temas recorrentes em sua produção. Criada em 2018, a instalação foi parte da exposição “Indicators: Artists on Climate Change” no Storm King Art Center em Nova York e é composta por tamborins prateados montados em três pilares de aço, medindo cerca de 5,5 metros de altura.

Essa monumental pilha de tamborins recebe seu título a partir dos versos da música “Florida Storm”, um hino escrito em 1928 por Judge Jackson que memorializa as vidas perdidas no Grande Furacão de Miami de 1926 e no Furacão Okeechobee de 1928, os quais devastaram o estado natal do artista, a Flórida, e o sudeste do Alabama. Eventos como esses são marcados por sua intensa destruição e pelo impacto desproporcional sobre as comunidades negras no sul dos Estados Unidos, muitas das quais compreendiam trabalhadores migrantes que acabaram em valas comuns não marcadas.

O uso dos tamborins na escultura não é aleatório; esses instrumentos são símbolos de celebração, espiritualidade, contação de histórias e conflito. Por meio dessa simbologia, Hamilton evoca a memória dos eventos históricos e ilustra a resiliência e a perseverança cultural das comunidades negras diante dos desafios climáticos passados e presentes.

LaToya Ruby Frazier, Flint is Family, 2016

LaToya Ruby Frazier | “Flint is Family”, 2016

Por meio da fotografia, texto e vídeo, a artista e ativista social utiliza sua produção para resgatar e preservar narrativas esquecidas sobre trabalho, gênero e raça na era pós-industrial. Em 2016, ela imergiu na comunidade de Flint, Michigan, testemunhando as vidas cotidianas em meio a uma das mais devastadoras crises ecológicas dos EUA: a crise de água em Flint. Esta crise ocorreu quando a cidade trocou sua fonte de água para o Rio Flint, sem tratamento adequado, resultando na exposição dos moradores a níveis inseguros de substâncias tóxicas, como chumbo.

Com a maioria da população negra e cerca de 40% vivendo abaixo da linha da pobreza, Frazier busca expor as desigualdades enfrentadas pelos moradores, revelando a violação de seus direitos básicos, como acesso a água limpa. O resultado dessa experiência foi a obra artística-documental “Flint is Family”.

John Akomfrah, Listening All Night to the Rain (still), 2024 © Smoking Dogs Films; cortesia de Smoking Dogs Films e Lisson Gallery

John Akomfrah | “Listening All Night to the Rain”, 2024

No caso do artista e cineasta britânico de origem ganesa John Akomfrah, escolhemos selecionar sua mais recente exposição, intitulada “Listening All Night to the Rain,” com curadoria de Tarini Malik para o Pavilhão Britânico na Bienal de Veneza de 2024. Inspirando-se no título do poeta chinês Su Dongpo e empregando instalações multimídia que inclui seis projeções de filmes em salas e telas adicionadas pelo pótico do pavilhão, a exposição entrelaça narrativas de migração, discriminação e impacto ambiental. Ela presta homenagem a vozes marginalizadas, incluindo a geração Windrush – nome dado à primeira geração de trabalhadores negros originários das colônias inglesas no Caribe que aportou em Londres, em 1948, a bordo do navio Empire Windrush –, e reflete sobre momentos fundamentais na história colonial e pós-colonial.

Através da lente desta exposição, Akomfrah destaca as crises ambientais que afetam várias comunidades, conectando essas questões a contextos sociopolíticos e históricos mais amplos. O tema recorrente da água ao longo da mostra simboliza as nuances culturais das diferentes diásporas britânicas, abordando também sobre as mudanças ambientais que impactam essas comunidades. 

A construção narrativa da exposição emprega elementos de storytelling visual e auditivo para enfatizar a interconexão entre identidade cultural, história e questões ambientais. Esta abordagem está alinhada com o foco consistente de Akomfrah em narrativas históricas negligenciadas e nas experiências das diásporas migrantes. Obras como “Handsworth Songs” e “Purple,” abordam criticamente temas de impacto racial e ambiental enquanto engajam com as contribuições e tribulações históricas de diversas comunidades.

The NEST Collective, Return to Sender, 2022 © Foto: Nils Klinger. Cortesia da Documenta 15

The NEST Collective | “Return to Sender”, 2022

O coletivo, sediado em Nairóbi, Quênia, é uma plataforma artística multidisciplinar fundada em 2012. A obra “Return to Sender” [Retornar ao Remetente], comissionada pela Documenta 15 de Kassel, é uma instalação composta por filme e trilha sonora ambiente, cujo conteúdo é uma compilação de sons gravados em mercados de roupas usadas em Nairóbi. A obra é construída inteiramente a partir de fardos de vestuário usados – conhecidos como “mitumba” em suaíli –, que são “doados” em grandes volumes por pessoas da Europa, América e Ásia para a África.

Nos mercados de diversos países africanos, essas roupas de segunda mão são amontoadas, algumas comercializadas, porém até 40% dessas vestimentas são inutilizáveis e acabam sendo descartadas, gerando poluição principalmente em rios e aterros sanitários. A obra expõe os problemas globais atuais relacionados ao consumo desenfreado e ao desperdício, além de destacar a necessidade de soluções sustentáveis e conscientização sobre as consequências do descarte inadequado de produtos.

Romuald Hazoumè, máscaras da série “Found objects”, 1980-2024

Romuald Hazoumè | Máscaras da série “Found objects”, 1980-2024

Nascido no Benin em 1962 e criado em uma família de origem iorubá – um grupo étnico do oeste da África onde as máscaras desempenham um papel central – Romuald Hazoumè é um dos artistas contemporâneos africanos mais proeminentes, tendo recebido o prestigioso Prêmio Arnold Bode na documenta 12. Ele ganhou destaque internacional com suas “Masques Bidons” [Máscaras de Galões], máscaras feitas de galões de gasolina descartados, que ele começou a criar na década de 1980. Com pequenos gestos – como posicionar ou adicionar um ou dois elementos – ele quebra convenções de conhecimentos ancestrais enquanto faz críticas sociais e ambientais incisivas.

As máscaras sagradas criadas a partir de objetos do cotidiano – cordas, funis e galões – fazem referência ao transporte ilegal de petróleo da Nigéria, denunciando o perigo desse sistema lucrativo para a população. Além disso, suas obras criticam o consumismo e o lixo que produzimos e depositamos no planeta. Hazoumè é também conhecido pela obra “La Bouche du Roi”, na qual usou os mesmos galões e outros materiais reciclados para reproduzir o Brookes, um navio inglês que transportava escravos no século XVIII. Esta peça combina elementos históricos e materiais contemporâneos para abordar questões de exploração e injustiça social.

Torkwase Dyson, Plantationocene, 2019, na Arthur Ross Architecture Gallery.

Torkwase Dyson | “1919: Black Water”, 2021

A exposição “1919: Black Water” da artista baseada em Nova York, que participou da 35ª Bienal de São Paulo, foi realizada na Escola de Pós-Graduação em Arquitetura, Planejamento e Preservação da Universidade Columbia em 2019. A mostra aborda o centenário do “Verão Vermelho” de 1919, quando houve uma onda de violência racial nos Estados Unidos. Partindo de um episódio trágico nas praias segregadas do South Side de Chicago, onde o jovem negro Eugene Williams foi morto, Dyson investiga a relação entre raça, migração climática e arquitetura. Utilizando uma variedade de mídias, incluindo pintura, escultura e desenho, a artista cria sistemas visuais e materiais que exploram a percepção espacial dos corpos negros.

A pintura “Plantationocene” (2019), por exemplo, comunica uma forte sensação de espaço racializado. Quando observada de perto, as formas centrais negras lembram uma jangada vista de cima, enquanto as faixas brancas brilhantes ao redor sugerem água reluzente. À distância, entretanto, a forma central se assemelha à proa imponente de um navio vista de frente, com as marcas brancas evocando feixes de holofotes. O título da obra é baseado em um termo para o nosso período geológico, que alguns acadêmicos, como Donna Haraway, preferem em vez de “Antropoceno”, pois enfatiza o impacto do trabalho forçado nas economias de extração que influenciam significativamente as ecologias globais.

Ainda, a exposição destaca como a água atua como uma geografia contestada e como as mudanças climáticas e os impactos ambientais negativos afetam desproporcionalmente pessoas étnico-racializadas conectando esse evento a questões contemporâneas de racismo ambiental e resistência. Dyson introduz o conceito de “Black Compositional Thought” [Pensamento Composicional Negro], um termo de trabalho que considera como redes espaciais – caminhos, passagens, água, arquitetura e geografias – são compostas por corpos negros e como esses elementos interagem como redes de libertação.

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